quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A ruína de Babel


Vindos de vários cantos do mundo, agora aqueles homens se reuniam ali, seja por obra do acaso, do destino ou ainda por desígnios divinos. Ainda que todos estes futuros tivessem em comum o fato de serem incompreensíveis para a mente humana, cada um daqueles homens cria em alguma dessas coisas - acaso, destino ou desígnios superiores -, afinal é de direito de cada um acreditar no que bem entender. Foram dias gastos a contar, um por um, as suas estórias; com o tempo, perceberam que haviam vivido coisas muito distintas, que haviam passado pelos mais ermos pedaços de terra e que, por conseguinte, não havia muito mais o que explorar neste mundo: já tinham viajado por todos os cantos de forma que, se reunissem todas as vivências de cada um, teríamos ali a história do mundo. Mas não estavam lá muito preocupados com essas estórias do mundo viajado e vivido por cada um, pois comungavam a ideia de que o passado só nos é útil se for para, no presente, edificar o futuro.

Há de se ressaltar que, enquanto os outros pensavam sobre o que fazer agora - sendo que alguns poucos já haviam partido para outras terras - um deles, admirado, fitava o céu. Depois de absorto por um tempo que não se sabe quanto - afinal, a noção de tempo, à época, não estava lá muito bem estabelecida, ou pelo menos não era consenso -, voltou-se para os homens ao seu lado sem dizer uma única palavra; logo todos os outros entenderam o que se passava, numa compreensão tácita. Ainda que possuíssem todo tempo do mundo, não havia tempo a perder. Desde sempre o homem corre e se apressa sem saber bem o porquê; fato é que, desde que existe, o homem é assim. Enfim, tinham de se tornar célebres. Apesar de ínfimo, o homem pode ter aspirações grandes - e quem nos pode garantir que não são essas aspirações que os tem salvado, desde os tempos mais remotos, da extinção e do esquecimento?

Com tamanha pressa, ainda que incompreensível, as obras não tardaram a ter início. Dos vários cantos por onde haviam viajado, uns aprenderam sobre engenharia, outros sobre o clima, outros sobre o dia e a noite; outros sobre música, outros sobre culinária, outros sobre misticismo e mistério; outros sobre medicina e alguns outros acreditavam ter descoberto algo sobre Deus. Portanto havia conhecimento necessário para que o homem chegasse aos céus. E os homens construíam.

Não tardou para que o ser supremo deste mundo e de todo o universo se sentisse de certa forma ameaçado pela audácia humana. A construção, a cada dia de trabalho, mostrava-se mais alta e imponente diante dos olhos dos homens e dos do próprio Deus. "Agora vocês não irão mais se entender". Era a voz divina que irrompia autoritária dos céus. Atônitos, os homens não haviam compreendido bem o que havia se passado até que tentassem, em vão, se comunicar. Perceberam que falavam coisas diferentes e que o que saía das bocas de uns era incompreensível aos ouvidos dos outros. Estavam, portanto, a falar línguas diferentes. Revoltados, bradaram ininterruptamente aos céus por um tempo suficiente para incomodar até mesmo Deus, até que seus clamores foram escutados. Como poderia Deus se concentrar em seu árduo trabalho divino diante da existência dessas vozes descontentes que tanto protestavam e questionavam sua autoridade? E Deus, novamente, voltou-se para aqueles homens, ainda que apenas para observá-los.

Fartos de tanto protestar, os homens buscaram outros modos de se comunicar. Em vão. Contudo, é evidente que não havia idiomas diferentes para tantos homens e, ainda que os houvesse, o trabalho para pensar tantas variações que poderiam ser proferidas por uma mesma estrutura vocal seria, no mínimo, extenuante para Deus. Ele sabia que duas ou três destas pequenas criaturas não poderiam continuar a construção, ainda que o tentassem; e tentaram. Juntaram-se os dois que não demoraram muito para perceber que falavam o mesmo idioma e retomaram a construção. Perceberam, ainda, que tinham a possibilidade, por certo apenas um dos dois, de se tornar a autoridade ali. Aquele que mais construísse seria, portanto, o rei. Aqueles dois pareciam, contudo, não perceber duas coisas. Por certo o rei seria, inevitavelmente, solitário, pois ali os homens eram incapazes de se comunicar. De que adianta um rei que não pode escutar seus súditos e nem por eles ser escutado? Pareciam ter esquecido, também, que o ponto de chegada só poderia ser os céus.

Apesar destas duas coisas que deveriam aparecer como importantes nas cabeças daqueles dois, cada um em um dos lados da construção, começaram a trabalhar. Não tardou muito para entenderem que a tarefa dos dois se desenvolvia no mesmo ritmo, de modo que seria necessário muito tempo para que se mostrasse alguma diferença no trabalho de ambos. Mas eles tinham pressa para serem reis. Certo dia, uma das partes da construção amanheceu sem um tijolo. Na manhã seguinte, a parte do outro amanheceu sem dois tijolos. Dia seguinte, a do primeiro amanheceu sem três, e assim sucessivamente. E assim infinitamente.

Deus viu tudo aquilo e riu da Sua tolice. Devolveu aos homens a voz e o idioma único. Afinal, não importava se fossem um povo único ou se constituíssem vários povos dispersos; não importava se falassem a mesma língua ou se falassem idiomas distintos. A Torre de Babel estava arruinada muito antes da sua concepção. Apesar da imperfeição da Sua obra, Ele estava satisfeito.
 
 

Rafael de Paula

Sobre a amizade


Não se escolhe um bom amigo. Escolhe-se estar aberto, e só. O resto é o acaso, o destino, o futuro e o presente, a coincidência, a identificação, os valores, o futebol, a música, o cinema, os filmes; a confiança, a tristeza, a mágoa, a verdade, o perdão, os livros, o ócio, os planos, a alegria, o chiste e a zombaria; a pinga, as madrugadas, as histórias, as lembranças, o passado, a felicidade, a bebida, a zombaria, a poesia, o violão, a distância, o estranhamento, ódio nunca; o dinheiro, as mulheres, a bebida, a verdade, a tristeza, as histórias, o perdão e a sorte. O presente, sempre. O presente, não só nos aniversários. O futuro, mais presente ainda; mais que tudo.

Rafael de Paula

Carta ao Sr. Joaquim Carvalho - Carta II

Caro Sr. Joaquim Carvalho,


Recebi com muita alegria a última correspondência que me mandaste. Acreditei, por alguns meses, que já não se importava com minha pessoa e que minhas cartas a ti enviadas tornavam-se fardos ou importunos cujo inevitável destino era o lixo, junto de todas aquelas coisas que não precisamos, que temos asco e, ainda, vergonha. É no lixo que despejamos os dejetos daquilo que utilizamos e, portanto, daquilo que somos. No lixo está o que não presta, e mesmo assim há umas tantas quantas pessoas que se submetem a remexer e revolver o lixo dos outros. Talvez seja isso: revolver o lixo dos outros é mais fácil que fuçar a própria sujeira. Então, realmente fico feliz de minhas cartas não terem terminado ali por voluntarismo de tuas mãos.


Por outro lado, não posso deixar de me entristecer pela partida de teu irmão e, ainda, pelas infelizes notícias que me chegaram por meio da última carta que me mandaste. Realmente estás tão mal? Tens tão pouco tempo? Infelizmente, não posso sair daqui. A cidade grande nos exige muito, nos suga até a última gota de suor e de sangue. O trabalho na fábrica de parafusos é extenuante e o salário é quase indigno, mas que posso eu fazer, já que foi escolha minha cá estar a viver? Devo encarar como homem as coisas que essa vida me impõe e assumir a responsabilidade por minhas decisões. Mas, confesso, eu era mais feliz aí, junto a ti e à minha família. Portanto, não te enganes com a cidade grande. Grande de tristezas, de frustrações e de solidão.


Os sonhos grandes acabaram comigo, caro amigo. Imaginei achar cá grandes oportunidades, grandes pessoas, grandes coisas. Mas o que encontrei foi gente pobre, sofrida e triste. Encontrei uma cidade cinzenta, tal como o coração dos seus habitantes. Evito as faces sorumbáticas que me encaram como que a sustentar um desafio tácito. Desafio à que? Que querem eles me tirar, se já não possuo mais nada além da pouca dignidade que me resta? Os homens aqui lutam somente pelo orgulho, pois não há nada que valha a pena, a labuta e a peleja. É assim que estão os homens: encaram-se e se destroem pela mera afirmação de si. Pela afirmação de nada. E se perdem nesse digladiar inútil. São assim as pessoas da cidade grande. Não têm história, não têm tradição, não têm dignidade. O passado destes homens se perdeu e com ele se perdeu a – sua – humanidade. É por isso que me lembro com alegria dos meus pais e da bonita história da nossa pequena cidade. Um povo que veio retirado – e não fugido, como dizem algumas más línguas! Povo bravo e heroico esse nosso! Lembro-me, também, com gosto dos bailes que movimentavam toda a vila, que faziam as damas se sacolejarem todas de excitação, que causava todo um rebuliço, que trazia esperança aos olhos dessa gente pobre, sofrida, mas feliz. Recordo-me com lágrimas nos olhos das épocas de colheita, quando todos se amontoavam debaixo dos pés de café – que nos eram tão preciosos –, sendo que hoje, tudo que colho é desprezo, rancor e parafusos. Seria eu mais feliz com sonhos pequenos em uma cidade pequena. Ambos do meu tamanho, e talvez pelo reconhecimento disso eu engrandeci. Talvez o reconhecimento da nossa pequenez e de que dependemos do outro nos torne grandes. Sou pequeno, por isso sou grande. E as pessoas da cidade não percebem isso. E ainda: acham que a grandeza vem do grande. Por isso, discordo de ti, mais precisamente, discordo veementemente do que tu me disseste na carta anterior. Portanto, não te iludas com a cidade grande.


Acácia cá esteve, junto a mim. Conversamos, bebemos e, depois, transamos. A amada de teu irmão esteve nos meus braços, esquentou meu corpo e me deu mais que o seu amor. Deu-me o que era de seu irmão. Mas a vida é assim: tomamos coisas que não são nossas achando que as são; damos muitas coisas a quem não quer ou que delas não precisam; enfim, erramos. Mas temos o direito de nos redimir. Ao menos uma chance merecemos. Eu e Acácia tentamos nos redimir com a carta que enviamos ao teu irmão. Post mortem, claro, mas pelo menos aliviamos um pouco nossas consciências que, confesso, ainda pesam. Nossas desculpas foram enterradas com ele e nem mesmo o mais poderoso terremoto será capaz de exumá-las. Estou certo de que fomos perdoados. Teu irmão era um homem grande, de coração enorme. E partiu feliz, apesar de tudo.


Mas pergunto: e Alice, respondeu-te? Acredito que não. Mas perdoa-a. Com certeza, em seu caixão, haverá uma carta de resposta. E quem sou eu para te dar conselhos? Mas é por me recolher à minha insignificância que te digo: vive bem com o que tens, esquece-te do que poderias ter tido e do que terás. Vive bem com o que tens, pois aos homens não são destinadas muitas coisas nesse mundo. Esse é o maior sonho que podemos ter e é também a coisa mais difícil a ser alcançada pela nossa condição humana.


Amigavelmente,
Sr. Ruas




P.S.: Aqui reescrevo o que escrevi na carta ao teu irmão, de forma integral e precisa: 


“Minhas sinceras desculpas por roubar o que era, sempre foi e seria teu.
Ass.: Sr. Ruas




Minhas sinceras desculpas por não ter sido sua, sendo que isso foi o que sempre quis. Minhas sinceras desculpas por não ter te dado o meu amor, que sempre foi seu não sendo.
Ass.: Acácia




Nossas sinceras desculpas por sermos humanos e, por isso, temos certeza de que há de nos perdoar. Perdoa também o teu irmão, que, com toda a certeza, sofre muito mais que ti.
Ass.: Acácia e Sr. Ruas”

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Carta ao Sr. Ruas - Carta I

Meu caro amigo,


Já adianto que me sinto envergonhado pelo tempo que não dou notícias. Suas cartas se acumulam já empoeiradas em minha estante, mas guardadas com o zelo que elas merecem. Todas elas lidas de canto a canto, com cuidado inestimável, mas nenhuma delas respondida. Não por indolência, mas por motivos pessoais sérios que roubaram de mim todas as forças para viver e retribuir quaisquer gestos de estima e de amizade, como os seus. Então, minhas sinceras desculpas. Em busca de me redimir, vou lhe contar uma estória, ocorrida aqui mesmo na nossa cidade de onde já partiu, na qual ainda permaneço. Enraizado como duras raízes de velhas árvores, nunca saí daqui. Diferentemente de você, não tenho sonhos grandes e nem o talento necessário para ter esse tipo de sonho. Se os tivesse, me arrebentaria todo nos impávidos tijolos da realidade. Mas contarei uma estória dessas que não se vê comumente, muito menos na cidade grande.

O fato é que ninguém sabe ao certo quando foi que ele chegou. Alguns dizem que desceu na estação do trem próxima à Igreja, na praça onde costumávamos nós brincar quando crianças, portando apenas uma maleta de mão e uma sacola que pendia nos ombros. Outros dizem que chegou montado num jumento velho e maltratado, tão magro e sonolento que dava dó. O velho Irineu, da padaria, está certo de que já o vira quando serviu o exército. Marta, do cabaré, afirma já telo visto no bordel que trabalhava quando era jovem e ainda era capaz de levar os homens à loucura. Sr. Júlio, jornaleiro, está convicto que já o vira num jornal de tempos atrás, ao lado do governador e dançando com a mulher do prefeito. Aristeu, da pousada, diz que já o vira num dos cursos de hotelaria que havia feito vários anos atrás no norte do país. Zulmira acredita tê-lo visto no sul e Maria das Dores, no leste. Há algumas línguas perfídias que insistem que veio fugido, de polícia e de bandido. Há alguns outros que, sem mais o que fazer, espalham que ele tem uma doença incurável e que aproveita seus últimos dias no marasmo e quietude da nossa cidade. Mas ninguém tem certeza de nada e falam sobre tudo, coisa característica da nossa ignóbil condição humana.

Certa vez o vi voltando das compras. Cumprimentou-me com uma discreta mesura e continuou seu caminho, tal como eu fiz. Não parecia ter comprado muitas coisas; não parecia ser do tipo perdulário. Vestia-se com cuidado, mas sem luxo. O chapéu, apesar de velho, era limpo e parecia sempre ser escovado. As blusas, sem manchas, nunca estavam amarrotadas. Os sapatos estavam sempre bem engraxados, apesar de as solas já estarem gastas pelo uso. Seu olhar era sereno e até meio triste, daqueles que baixam as vistas e não se delongam no fitar de olhos. Mas a face já afetada pelo tempo e pelas intempéries dos destinos demonstrava uma placidez inexpugnável, diria até magnânima. Seus gestos, palavras e tom de voz eram d’uma polidez exemplar e às vezes até constrangedora para nós que, de origem simples, vemos e tratamos todos com intimidade muitas vezes inapropriada. Era de uma polidez singela, o que a tornava mais bonita.

Sabe-se que um dia, pois os boatos se espalham como piolhos em cabeleira de mendigo, aquele homem caiu na rua. Assim, de repente. Vários se juntaram para acudi-lo, alguns genuinamente prestativos e outros mais por estas convenções sociais que muitas vezes nos impelem a fazer coisas que não queremos, mas que nos sentimos obrigados a fazer a fim de evitar admoestações e reprimendas tácitas ou não. Fato é que ele caiu como uma jaca. Dali foi levado para a casa da Mãe Joana, naquele terreiro em que costumávamos nos esconder para ver os espíritos que diziam habitar por lá (me recordo que tudo que encontramos foram uns cachorros que trepavam e uma velha louca que nos atirou uma vassoura, que acabou acertando os lascivos animais). Dizem que ficou febril, mas outros dizem que tossia sangue. Talvez os dois. Como já corria pela cidade, parecia que ele ia mesmo morrer. O Doutor Saulo, médico dos bons, filho do Doutor Ernesto, que aqui trabalhava na época em que você ainda estava, tinha dado o veredicto: uma semana. Como não tinha amigos ou parentes próximos, ficou por ali mesmo, no terreiro. À noite, até mesmo eu, que moro a duas quadras da Mãe Joana, podia escutar os gritos do pobre coitado, que padecia daquele mal desconhecido e portanto sem cura.

E acabou que, profeticamente, em uma semana, o sujeito morreu mesmo. Foram feitas doações para o velório e para o enterro, pois, por mais que ele não tivesse ninguém próximo que vivesse na cidade, não merecia ser jogado em qualquer buraco ou mandado para uma cidade qualquer, como um trambolho daqueles que todos querem se livrar o mais rápido possível. No dia do velório, apareceu uma mulher. Vestida com luxo, mas sem cuidado, a dama, sob os olhares de todos, caminhou até o caixão, deixou um bilhete e partiu. Eu, por minha posição privilegiada, pude ver que ela se desfazia em prantos, que deveras sofria. Fitei o bilhete e, por incrível que pareça, reconheci a letra. Era a sua letra, meu amigo Ruas. Não aguentando de curiosidade, fui para diante do caixão. Vi como o tempo era inexorável. Pessoas vão e vêm, nascem e morrem, como coisas pequenas que, se formos comparar com tudo que existe, não são nada; nem as várias pequenezes reunidas parecem valer alguma coisa nesse momento. O fato é que me fixei no rosto do homem. Um susto! Esfreguei os olhos e olhei de novo. Impossível, mas era eu! Via meus contornos, meu queixo largo e quadrado, meus cabelos já brancos e ralos, minha cicatriz logo acima do olho e a eterna marca da aliança em meu dedo. Mas faltava-lhe um pedaço da orelha, e a minha era perfeita. Ainda assim a semelhança era assombrosa. Assustado, olhei para os outros para ver se compartilhavam do meu assombro, mas pareciam indiferentes tanto em relação à morte do homem quanto em relação a nossa semelhança. Ninguém parecia nem ao menos notar. Até que, vendo onde eu estava, todos começaram a me cumprimentar, ainda que com certo desprezo e desdém, e ofereceram-me seus pêsames. E tive de admitir, para mim e diante dos outros, que aquele era o irmão que eu tanto reneguei.

Dias depois descobri que ele viera de longe procurar por duas pessoas, mas não as havia encontrado. Quem seria a outra? Há, de fato, uma coisa que os homens sempre procuram e, pensando nisso, resolvi mandar uma carta à Alice. Ela não respondeu, como era esperado, mas estou certo de que a carta chegou. Não posso mais mandar uma carta a Manuel Carvalho, e disso me arrependo profundamente. Entristeço-me pela sua partida e pela minha covardia. Dizem, na cidade, que não valho o pão que o diabo amassou. Espalham que estou doente, tal como estivera meu irmão. Admito meu opróbrio, mas quem pensam eles que são para me condenar assim? Realmente padeço de um mal desconhecido e dia destes caí na rua, mas não houve braço a se estender em meu auxílio. Nem ao menos as obrigações sociais...Uma semana, assegurou-me o doutor. Mas agora, no fim desta carta, lhe pergunto: o que havia no bilhete que mandou ao defunto do meu irmão? Aguardo ansiosamente por uma resposta.

Atenciosamente,

Joaquim Carvalho.

sábado, 17 de setembro de 2011

Sobre deuses e homens


O vento soprava leve, como a acariciar as existências daqueles que o sentiam ali, naquele jardim imaculado. Debaixo de uma figueira, protegido pela sombra, uma criatura se mantinha inerte, à exceção da sua mente, provocada pelo sopro de vida que lhe vinha, talvez, do fundo d’alma, mas que ainda não sabia onde colocá-lo ou como usá-lo. Talvez fosse por isso que estivesse ali, a meditar desde os tempos mais remotos. Então, com exceção da mente, o resto era estático. No céu, algumas nuvens se aglomeravam enquanto trovões ressoavam pelo jardim. “Hoje chove”, previu.

Realmente começava a chover. A chuva torrencial era incapaz de mover uma só parte do corpo daquele ser, que continuava sentado debaixo da árvore. As flores de lótus, que ali estavam desde os tempos remotos, eram castigadas pelo vento, mas se mantinham firmes, lutando para que não fossem extirpadas. Um raio caiu do céu, sem atingir, contudo, a árvore ou o ser que embaixo dela permanecia, mas muito próximo dali. Do lugar onde havia caído o raio, apareceu outra criatura, que indagou à primeira: “que fazes?”. Desperto de estado semelhante ao torpor, a primeira levantou a cabeça. “Por que me interrompe?”.

Dotado de um fulgor extasiante, o sol, mesmo com a chuva, impunha sua presença àqueles dois que se encaravam ali embaixo. Um eclipse se iniciava. Parcial. Total. Escuridão. Nesse momento, aparecia um terceiro à cena inicial. Este, que agora iluminava o jardim, indaga: “que fazem aí?”.

Terrivelmente incomodado com a luz que acabara, repentinamente, em sua festa – apesar de disso não reclamarem os mais lascivos -, depois de tropeçar em seres que se uniam, em garrafas de vinho, em mais outros tantos quantos objetos não identificáveis naquele breu, surgia mais um naquele jardim, ainda levemente embriagado mas cônscio de que algo ali não estava bem. “Que acontece aqui?”.

Agora na escuridão, uma estrela se destacava. O verbo está no passado pois a estrela acabava de sumir. A estrela de Vênus havia sumido e um quarto ser se juntava aos quatro que se encaravam na terra. “Por que estes olhos tão feios uns para os outros?”, disse a figura feminina, que impressionava por sua beleza esplendorosa.

Do alto da árvore, antes absorto em pensamentos aos quais só a ele mesmo dizem respeito, erguia-se a figura de mais uma criatura. Aparentemente a mais incomodada de todas ali presentes com a súbita e inesperada reunião, desceu e fitava todos eles nos olhos, sustentando um desafio tácito.

O primeiro só queria meditar. O segundo, impotente às eternas meditações do primeiro, vistas como uma afronta ao seu poder supremo, resolveu por lhe impor sua presença e deixar bem claro quem era quem. O terceiro, invejoso do segundo, não quis ficar para trás e quis mostrar a todos a magnificência do sol. O quarto queria mostrar que a libertinagem e boemia eram as melhores formas de sorver os prazeres da vida. A quinta queria mostrar que era mais bela do que todos ali, e não haveria alguma ocasião melhor que esta para tal. O sexto ficou incomodado com a soberba de todos. Primeiro discutiram quem era o mais poderoso. Cotejos eram inevitáveis, mas pelas idiossincrasias inerentes a qualquer criatura vivente, tal início de peleja se mostrou descabida; todos, ao seu modo particular, eram poderosos. Passaram a debater seus feitos, mas todos ali já haviam feito coisas grandiosas, que não deixavam dúvidas sobre seu poder, capacidade e benevolência. Depois discutiram sobre a possibilidade de algum deles ser, de fato, o mais antigo. Mas a vetustez era incomparável, pois não sabiam muito bem quando surgiram e eram imortais; logo, a ideia de tempo não fazia sentido para eles. Depois passaram a falar dos seus propósitos no universo; mas estes, por mais que as palavras se mostrassem distintas e os discursos mais ou menos elaborados, eram, fundamentalmente, os mesmos. Passaram a comparar a beleza, mas, apesar de haver uma visivelmente mais bonita do que os outros cinco, logo chegaram à opinião quase unânime de que estas aparências mais bem torneadas não podem valer de muita coisa nesse mundo, a não ser às primeiras vistas, às quais só se prendem os parvos; como era esperado, isso despertou a ira da quinta criatura, pois seu maior dote, ali, de nada valia, ainda que ela tivesse outras qualidades as quais tiveram de emergir devido às necessidades. Também chegaram à conclusão quase unânime de que não valia a pena existir de forma perdulária e pândega e evitar, assim, os questionamentos mais essenciais; isso, como era de se esperar, deixou um deles profundamente irritado. Contudo, a insofismável equivalência relativa das existências dos seres ali presentes não foi suficiente para dar fim à discussão. Imortais, não se importariam de passar os séculos ali, debatendo. E enquanto discutiam, não perceberam que, desde que resolveram largar seus afazeres para debater, o mundo estava sem luz, sem chuva, sem beleza e sem paz. A sabedoria infinita de todos eles seria capaz de manter a discussão por toda a eternidade. Inflexíveis e com sentimentos de onipotência inexpugnável, debatiam, argumentavam, filosofavam. O que continuaria até o fim dos tempos, caso quisessem. Contudo, um deles, que tinha ficado cada vez mais calado durante os últimos tempos – não se sabe se minutos, meses ou séculos – resolveu, por fim, se calar. Agora a discussão tinha apenas cinco. Percebeu que não discordava de nenhum deles e, portanto, não tinha o que dizer, impor e argumentar. Os outros, por sua vez, também não divergiam em ponto algum. E discutiam.

Havia, abaixo do jardim em que se encontravam, um abismo tomado em seu interior pela neblina. Uma névoa densa, misteriosa, que não permitia às vistas alcançar tanto oo que havia dentro do precipício quanto o que estava além dele. Dizia-se que quem ali caísse e respirasse daquele ar deixaria de ser imortal e infinito, tanto em sua existência quanto em sua sabedoria. Era um local temido pelos seres que ali viviam ou que, por algum destes acasos da vida, por ali passavam. Dali para baixo a vida passaria a ter um fim certo. Durante a discussão que se encaminhava a ser perpétua, aquele que já havia se calado começou a caminhar até o precipício. Depois de algum tempo – não se sabe quanto – de contemplação, não de dúvida – afinal, aquilo era tudo que ali havia para ser contemplado –, atirou-se no precipício. Sentiu o vento no rosto, mas este era diferente daquele de cima. Era um sopro de vida. Inspirou profundamente, sorvendo, sem moderação, a vida que adentrava seu ser por aquela névoa. Agora era mortal, e pensou nisso nos poucos minutos em que caía. Atingiu o chão, machucou-se, levantou-se e olhou para cima. Tal como antes, tinha algo a fazer. Mas alguma coisa havia mudado.

Deuses, os demiurgos do homem.




Rafael de Paula

sábado, 6 de agosto de 2011

Sobre a espera

Façamos da espera uma luta. Podem alguns, com certo acerto, argumentar o contrário. São todos argumentos, e estes nada mais são do que candidatos ao status de verdade. Disputam o pódio de bases trêmulas e quando nele chegam se embebedam da e na sua própria condição. Afinal, não há nada mais verdadeiro que as vicissitudes inerentes à vida; e não há nada mais fugaz que uma verdade. É verdade que até a verdade mais verdadeira pode deixar de ser verdade. Anáfora. Pleonasmo. Verdade! Mas eu falava da espera. Resistirei a cair noutra tergiversação desnecessária, que tanto atrapalha a comunicação duma ideia; afinal escrevemos para sermos compreendidos. Escrevemos para ser. Sem complicações. É verdade. Retomo, então: façamos da espera uma luta. Façamo-nos vivos na espera. Mas há aí qualquer coisa de incongruente. Algo aqui não satisfaz. Não é preciso mudar tanto a estrutura duma frase para lhe dar outro sentido. Fá-lo-ei: façamos da luta uma espera. Agora sim isso me parece suficientemente aceitável como argumento. Não como verdade; pois não quero mais ideias bêbadas, dessas que cambaleiam e titubeiam de tão tontas. Por fim: da espera, esperança. Mas cuidado, muito cuidado.


Rafael de Paula

sábado, 30 de julho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte VI – A busca

“Mas e agora, que fazer?”. Foi só isso que o homem pôde fazer ao se deparar com o destino, tanto o destino presente, resultado tanto dos destinos passados que já se concretizaram e hão de afetar o futuro quanto da iminência dos destinos que pertencem ao que há de vir – já que a possibilidade futura já afeta o presente somente pelo existir do ‘talvez’ –, quanto com o destino futuro, resultado dos passados e presentes. Mas todos esses tempos, no fim – se é que se pode falar em fim quando falamos em destino –, conformam um único destino. Por integrar, indiscriminadamente, passado, presente e futuro, tempos que se afetam mutuamente, não seria errado dizer que o destino é atemporal, pois não pertence a nenhum deles e está, inegável e imprescindivelmente, constituindo e ligando todos eles. São tempos que se mesclam, dependem entre si; fatos que ocorreram, ocorrem e que estão por ocorrer que se ligam e se ligaram por obra do destino. A ideia do destino como uma categoria mais básica que o próprio tempo, como seu constituinte e, por que não, sua matéria prima e estrutura fundamental, pelo menos nesse contexto não se revela de todo errônea.

“Pergunta errada, imbecil! Não se chega a lugar algum se perguntando, simplesmente, o que fazer. Não vê que há algo anterior a tudo isso?”. “Quem sou eu?”. Esta sim é a pergunta certa. Por que não poderíamos arriscar dizer que a resposta a essa pergunta seja a própria busca dessa resposta? A pergunta, que leva à busca da resposta, passa a ser a resposta à própria pergunta. O caminho da busca do conhecimento de si enquanto ser humano nos leva a construir quem somos e nos leva a saber do que gostamos, o que procuramos, donde pertencemos, o que nos identifica, o que nos realiza e aonde conseguimos ver nós mesmos. Era essa a pergunta que o nosso personagem tinha acabado de se fazer. “Quem sou eu?”.

De nada nos importaria saber, muito menos à sombra, por quais caminhos iria o sujeito enveredar. Parado na sala daquela casa escura e silenciosa o nosso personagem estava em movimento como nunca antes esteve. Ele tinha a pergunta e, por isso, tinha o que buscar. Então, ele tinha a sua resposta. Por fim, ele, por estar procurando a essência do seu ser, tinha chegado à essência do seu ser.

A partir daí a sombra ficaria calada. Eternamente calada. Afinal, não havia mais nada a ser dito. Somente a ser buscado.

Rafael de Paula

À procura do eu (des)conhecido



Parte V – A solidão

Na verdade, ex-vendedor de bíblias. Foram vendidas todas elas a um sebo nas imediações de sua residência, onde trabalhava um idoso já desprovido de alguns de seus dentes e da maioria dos seus cabelos. Um homem que comprava todo e qualquer livro – estivesse ele já carcomido por traças ou desgastado pelo próprio tempo – como se fosse novo, como se fosse o primeiro. “Por que vendeu os livros ao homem das lojas de sebos?”. Era a sombra, que, pela primeira vez, não assustou o sujeito. “Porque achei conveniente, ora! Que tem demais nisso?”. “Nada, penas queria saber o porquê de tal ato; e gostaria também que você soubesse”. O homem passou a refletir. Por quê havia feito aquilo? As bíblias foram todas elas repassadas a um vendedor que tinha o brilho no olhar que faltava ao nosso personagem e, talvez por isso, tenha resolvido deixar os tantos livros com ele. Identificamos muito facilmente nos outros aquelas coisas que nos faltam, ainda que, muitas vezes, não sejamos capazes de ter consciência dessa identificação. Nosso vazio reverbera quando vemos presente em alguém aquilo que nos falta. A reverberação é o grito desesperado do vazio que vê sua completude, ao mesmo tempo, tão perto e tão distante. É a ausência que reconhece a presença. Disso, concluímos que bem aventurados são aqueles que separam isso da inveja. E, provocado pela sombra, deve ter sido isso que nosso amigo concluiu nessas últimas andanças pelo seu labirinto interior. 

sábado, 16 de julho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte IV – O infinito

Em casa, descansava. Absorto, não via o passar das horas e nem ao menos percebia o tempo que perdia a pensar em nada. Pensava no futebol, na novela e no cão que pretendia comprar. Que precisava de um cão era certo. É bem provável que tanto a novela, o futebol quanto o cão eram modos alternativos de preencher-lhe os buracos que existiam no peito. Na procura de alento para a solidão, buscamos, muitas vezes, desesperados, objetos materiais ou simbólicos que possam nos livrar desse mal. Ainda sim, sempre objetos. É assim que acabamos por nos alienar e nos preocupar com as coisas frívolas: procurando objetos para nos tapar os buracos do coração e as angústias da alma, esquecemos-nos de encontrar os sujeitos. Assim, objetificamos a nós mesmos e aos outros. Sujeitamos o sujeito à objetificação, tendo como objetivo o objeto sujeitado. Reificamos corpo, mente e espírito, tanto próprio quanto do outro, não nos permitimos acesso ao conhecimento da alteridade e passamos a viver num mundo de coisas e objetos, de seres humanos petrificados por nosso próprio olhar. Tal como fazia a Medusa, da mitologia grega. Assim, mais cedo ou mais tarde, encontraremos nosso Perseu. Era o que fazia o indivíduo dessa história mas, por ora, o algoz de nosso infeliz homem não chegou e, talvez, nós, os construtores dessa narrativa, sejamos capazes de salvá-lo da perdição.

Voltemos à sombra, que, com nossa demora, já se encontra impaciente para falar. “No que pensa?”. Ainda não acostumado às intervenções repentinas e inoportunas da sua nova e inseparável companheira – que, na penumbra, mal podia ser delimitada – foi incapaz de dissimular o susto. “Até hoje continua a se assustar quando resolvo falar?”. “Claro, o que não é de se espantar. Afinal, não conheço viva alma que alguma vez me tenha relatado conversar com a própria sombra”. “De qualquer modo, no que pensava antes de eu te assustar?”. “Nada que valha a pena. Mas agora penso na solidão”. “Realmente, tem passado muito tempo sozinho. Que fez de suas antigas companhias, tal como seus pais e amigos?”. “Eu, nada. Apenas nossos caminhos se desviaram e, por isso, me encontro só”. “Talvez porque fuja”. E talvez fosse mesmo. A partir daí, os pensamentos do homem passaram a tomar esses rumos, caminhos do questionamento do porquê da solidão. Tal como toda reflexão, não é certo que se chegue a uma resposta. Muito pelo contrário. São maiores as chances de emergirem mais questões. Mas são essas indagações que levam, infinitamente, a outras indagações, que nos colocam em movimento infinito; talvez aí sejamos capazes de superar o finito que limita nossas existências na Terra. Não na imortalidade do ser – porque aí já estaríamos a partir para outros campos –, mas na infinitude irradiante da pergunta – de um ser para si mesmo e de um ser para o outro – infinitamente repetida. É possível que seja a pergunta a grande responsável por colocar o mundo em movimento. Se não o mundo, pelo menos a vida do nosso vendedor de bíblias.

domingo, 26 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido


Parte III – A descoberta do desencontro


Estava já à porta do primeiro possível comprador. Atendeu-lhe à campainha uma senhora que já chegava aos setenta anos. “Bom dia, estou aqui a lhe oferecer bíblias, ilustradas ou não, encapadas ou não. Há para todos os gostos!”. “Já tenho cá algumas destas. Não preciso de mais, mas, mesmo assim, obrigado!”. E a porta foi fechada, sem que o vendedor tivesse tempo de insistir um pouco mais. O trabalho de vendedor de bíblias é árduo, visto que nem todos são cristãos, as pessoas não compram tais livros todos os dias e, ainda, se incomodam com qualquer tipo de insistência. Além disso, é preciso ter tato e talento para vender, coisa que não se consegue quando se vende o que não se acredita. Por isso talvez tenha sido má ideia começar a vender bíblias: faltava-lhe a convicção e o brilho nos olhos pertencentes aos crédulos, às crianças, aos sonhadores e aos idealistas, que eram percebidas – ou a ausência destas –, conscientemente ou não, por aqueles que eram abordados. Um vendedor de sonhos, que realmente acreditasse nos seus sonhos, teria mais sorte do que o nosso pobre personagem em seu empreendimento. Mas enquanto não percebia esta coisa tão evidente, continuava a tentar. Segunda porta e segunda recusa. “Tudo bem, não foge ao que estamos nós, vendedores, acostumados a receber”. “Não percebe que isso tem tudo para acabar mal?”. Agora quem falava era a sombra, quase esquecida pelo sujeito que estava a se preocupar apenas com sua tarefa. “De onde veio tal ideia de vender estes livros, pobre infeliz?”. “Ainda está aí a me observar, sombra? De qualquer forma, veio de um padre, que certa vez me disse para espalhar a palavra de Deus. É isso que estou fazendo, à minha maneira, claro”. “Que língua afiada você tem! De qualquer modo, não sei nada de padres, igrejas ou bíblias. Sei é que isto não presta”. “Então o que sugere?”. “Quanto ao que fazer depois de largar tais livros, não tenho sugestão alguma. Por ora, apenas lhe digo para largar tal ofício. O que tem de você nele?”. Realmente não havia nada. Não tolerava insistentes, vendedores e padres. Na verdade, não havia nada dele em tudo que fazia e, em seus contatos com o mundo, privava os outros homens de captarem a sua própria essência. Privava a si mesmo e ao outro da lei natural dos encontros, donde damos e recebemos um tanto. Não dava nem recebia nada simplesmente por não ser ele mesmo e não se colocar e nem se ver em seus atos. Ora, privava-se de sua própria humanidade e, por conseguinte, tornava os outros menos humanos, ou melhor, menos potencialmente humanos.

sábado, 25 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido



Parte II - Descrença


“Por certo ainda estou a dormir. Donde já se viu uma sombra que fala?”. Esbofeteou-se no intuito de despertar, mas, ao abrir os olhos, percebeu que não dormia – estranhos são esses momentos em que não sabemos se estamos nós a sonhar ou a viver a realidade, ocasiões estas que nos deixam perplexos, confusos, fazendo-nos questionar ainda mais nosso julgamento de realidade. Por conseguinte, nesses momentos que se sucedem, compreendemos um pouco mais aqueles filósofos que se ocupavam da epistemologia que, amiúde, tanto criticamos por terem se voltado às questões menos importantes. Mas voltemos à nossa história, pois nosso homem, agora, encontra-se, mais do que nunca, sozinho no apartamento, desamparado, visto que nem mesmo eu, que o criei, dou-lhe a devida atenção. Agora podemos encontrá-lo a se indagar se está a ficar doido. “Se não estou a dormir, só posso estar louco!”. Enquanto isso, tinha a nítida impressão de que a sombra o olhava fixamente, como a desafiá-lo, ainda que esta não tivesse olhos ou coisa parecida. Incomodado, teve a brilhante ideia de fechar as cortinas. “Sem luz, não há sombra. Sem sombra, não há loucura, ou o que quer que seja”. Mal sabia o homem que a penumbra não era suficiente para livrar-lhe de seu tormento. Nesses casos, somente a escuridão total pode nos salvar, mas, mesmo assim, há o risco de nela se perder. Por algum motivo, a vida sempre nos impõe riscos maiores ou menores, ainda que os evitemos a todo custo. “Acha que pode se livrar de mim assim, tão fácil? De mim não pode fugir, como faz em todas as ocasiões de sua vida e com todas as pessoas que se lhe apresentam. Estarei sempre junto de você, a não ser que deixes de existir. Quer deixar de existir?”. Talvez quisesse, mas esta não era ocasião de dar espaço a tais pensamentos. “Anda, é hora de vender suas tralhas”. O homem, completamente esquecido de seus afazeres e obrigações, lembrou que, naquele dia, tinha de fazer algumas vendas. Por falta de oportunidade, não pude mencionar que nosso ilustre personagem é vendedor de bíblias, ainda que se considerasse ateu. Então, por que não pensar que sua atuação, por essência, era desonesta e, quiçá, vil? Nós, enquanto seres humanos, só temos o direito de oferecer ao outro aquilo que cremos, sejam objetos materiais ou mesmo opiniões. Caso contrário, o que fazemos é enganar os outros com um propósito qualquer, seja ele considerado bom ou mau, mas que, por assim ser, já carece da honestidade, da verdade e do respeito que movem os bons. Voltemos à nossa história, pois enquanto estávamos a refletir sobre essas coisas o homem já se punha a caminho da rua, já banhado, penteado, vestido e, ainda, assustado.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido



Parte I – A sombra

O despertador tocou alto, incômodo. Na verdade, o que mais atormentava naquela cena era a impassibilidade do sujeito deitado na cama diante de ruídos tão escandalosos. Pausa. O cenário fica mais leve sem o toque do maldito relógio. Era como se tudo aquilo que ali estava, imóvel, fossem eles seres animados ou inanimados, aproveitassem essa calmaria de momento. Afinal, a calmaria nada mais é do que o prenúncio da tempestade. Dito e feito. Recomeça o toque do despertador. Como antes, nenhuma reação do indivíduo deitado. Estaria ele a passar bem? Não há cansaço normal que explique tamanha apatia diante dos irritantes barulhos de um despertador. Pessoa normal, por mais fatigada que estivesse, tomaria alguma atitude. Talvez - por que não poderíamos nós inferir coisas sobre a personalidade de alguém tomando em conta apenas uma impressão momentânea? – o homem que ali vivia fosse assim diante da maioria das situações que se lhe apresentam na vida. Mas são apenas hipóteses. Então, por ora, abandonemo-las. Cessa o despertador. Pelas contas da vizinha de cima, do quinto andar, falta, ainda, um recomeço de despertador, até que cesse, automaticamente, pela última vez nessa manhã, desistindo de levantar aquele moribundo da cama.

As nuvens que cobriam o céu, seja lá por ação do vento ou mesmo por desígnios divinos – de um Deus que não mais aguentava o estado pachorrento no qual se encontravam alguns dos seres que certa vez criara com tanto esmero, à sua imagem e semelhança - deram passagem aos raios de sol que, impiedosos, alcançaram a janela do homem e terminaram por acertar em cheio a cara do sujeito. Ainda assim, nada. “Acorda, traste!”, disse uma voz. Pego de surpresa, o vagabundo, que já estava acordado desde que o despertador tocou pela primeira vez, mas que por indolência não reagiu, levantou-se, assustado. “É contigo que falo, malandro! Veja lá se isso são horas de continuar deitado!”. Depois da segunda fala não havia dúvidas de que alguém se infiltrara em sua casa enquanto dormia e, agora – porque agora? –, vinha falar-lhe. “Quem é? Apareça de uma vez, quem quer que seja! Olha que chamo a polícia!”. “Chama então, e passe por um tolo. É óbvio que a polícia não encontrará ninguém”. Acuado, o homem tateava a escrivaninha, ainda que também estivesse a buscar com os olhos o intruso que lhe dirigia as palavras, procurando algo que fosse útil caso fosse preciso reagir. Tudo que encontrou foram umas tantas canetas. Mas sem dúvida, numa peleja, são melhores as mãos nuas à uma caneta; e parece que pensamento similar lhe ocorreu, visto que tocou a caneta e logo a abandonou, sem deixar de mostrar certa desolação misturada ao medo diante de um alguém que não via e não sentia, mas só escutava. “Não pode me tocar e nem me ferir. Olha para baixo e vai me encontrar”. Olhou para baixo e, diante das janelas de seu apartamento, via que quem lhe falava era nada – ou ninguém, visto que, por estarmos no início da história, ainda não sabemos se seria melhor designar aquilo como coisa ou como gente – menos que sua sombra.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre o menino, o poeta e a flor

Numa terra distante – comum como todas as terras que existem e existiram até então –, num certo dia – comum como todos os que se passaram até então –, nasceu uma rosa – comum como todas as rosas que nasceram até então. Tudo isso era belo, mas na terra onde crescia a flor não havia ninguém. Neste lugar não havia nem ao menos uma alma viva, sendo ele ermo como o coração do homem que havia perdido ou esquecido a semente que dera vida à rosa, ou mesmo que a plantara, intencional e, portanto, cruelmente, ali, na solidão completa. Que passaria na cabeça dum homem antes de largar, em desamparo, uma forma de vida tão indefesa em tão sáfara terra? E a flor sofria, não simplesmente por estar só, mas por pensar que outros poderiam padecer do mesmo mal que a afligia. Eis que, depois de longo tempo, gotas d’água precipitaram-se no solo, e a terra passou, a partir desse momento, a adquirir vida. Sementes até então adormecidas despertaram como num fulgor extasiante, cuja flor observava, arrebatada, à espera da plenitude. Então a terra criou vida: árvores ergueram-se majestosas e imponentes, a grama crescera e dava ao chão a tonalidade verde que antes lhe faltara e os insetos passaram a desfrutar, com respeito, daquilo que a natureza oferecia.


Eis que, num certo dia, aparece um menino que dizia vir de outro planeta. Encantara-se com a rosa o menino e passava os dias imóvel ao seu lado, apesar dos brados reprovadores da flor. “Vá descobrir o mundo, menino. Há tantas coisas para se ver enquanto perde seu tempo ao lado de uma simples flor”. “Não creio que haja algo mais bonito do que tu, flor, e este lugar onde vive. Nada que eu encontrar nesse mundo valerá mais a pena”, retrucou o menino. Resignada, a flor se calou e não tocou mais no assunto. Passaram a conversar sobre tudo que tinham visto em suas vidas, o que não era muito. “É tão diferente da flor que vive em meu planeta. Diferente dela, você é simples e humilde. Vive em total harmonia com esta terra, sem de nada reclamar. Apesar de amar a flor que abandonei, simpatizo mais contigo”, disse o menino. Eis que, num certo dia, surge um poeta, que queria, por tudo, cantar ao mundo a beleza da flor. Rubra, dessa vez de cólera, a flor insultava a impertinência e ignorância do poeta que, com tantos problemas no mundo, queria falar de uma simples rosa. “Olha para as questões sérias, calhorda!”, bradava a flor. Lastimoso, o poeta foi embora, sem escrever sua poesia e ainda sujo com o cocozinho dum passarinho que ouvira toda a conversa.


“Devia fazer como o poeta, menino. Vá cuidar das coisas sérias e me esqueça, pois aqui estou bem”, insistia a flor, depois do episódio com o poeta. “E você, flor. Quando foi que ficou assim? Quando foi que perdeu sua simplicidade e pureza? É por terem perdido a singeleza e pureza que os homens grandes ficaram assim, tristes, sozinhos e cruéis consigo e com os outros. É por serem sérios demais que os homens estão ficando cada dia mais angustiados e sós. E, agora, não faz mais sentido ficar ao seu lado. Você perdeu aquilo que mais admirava em ti. Em sua seriedade, perdeu a vida”, disse o menino, para depois se levantar. Antes de ir embora, disse ao passarinho: “Com que direito feriu o poeta? Quem pensa que é para condená-lo da forma como o fez? É por isso que sempre achei as pessoas grandes muito esquisitas, muito egocêntricas e cheias de si. O mundo pode ter perdido a chance de ler o relato da mais bela flor, uma flor que não existe mais nas esfumaçadas cidades e nem nos acinzentados corações daqueles que a habitam. Tolheu-lhes o direito à fantasia, ao sonho”. E o menino partiu. A flor, sozinha, via o menino sumir na linha do horizonte, indo sei-lá-pra-onde, enquanto percebia que, com sua seriedade, expulsou todos aqueles que lhe queriam bem. Tal como os homens sérios, padecia em sua solidão. E reparou no passarinho, que caminhava, dissimuladamente, na sua direção. E o poeta, como não pôde falar da rosa, escreveu uma bela poesia sobre o menino que se mantinha, resoluto, ao lado da mais fria flor.


Rafael de Paula

terça-feira, 12 de abril de 2011

Sobre O encontro marcado

Todos nós temos um encontro marcado. Levados por contingências, por vezes, perdemos a direção da nossa vida; ficamos com o motor, mas passamos o volante para o destino. Inexorável. Retomamos e perdemos o controle por várias vezes. Uma circularidade inevitável da vida.

Na infância, caso esta seja saudável, os homens ocupam-se apenas dos seus sonhos e fantasias. Imaginam ser tudo que tem direito; querem ser como papai, como mamãe; astronautas; jogadores de futebol; modelos; atores, atrizes. E fantasiam, inventam e, por isso, vivem. É a única fase em que o ser humano tem a capacidade de tocar o outro pela singeleza da sua existência. Na adolescência querem mudar o mundo e, paralelamente, buscam, ansiosos, o sentido da vida e da nossa existência. Continuam com os mesmos sonhos e devaneios da infância, mas desta vez com um propósito, um objetivo. Dotado de uma vontade e desejos inexpugnáveis, inspirado nos heróis (idealizados, como todo bom herói da adolescência deve ser), o jovem quer mudar o mundo e tem certeza absoluta de que irá fazê-lo. Pouco mais adultos, já se veem adentrando no tecido social. Veem seus sonhos do outro lado do pano, percebendo um avanço que demandará, inevitavelmente, a ruptura de alguns dos laços sociais. Em outras palavras, se verão obrigados a ir contra o senso comum. Na vida adulta propriamente dita, veem-se tolhidos da busca dos seus ideais: os laços sociais que impedem o alcance dos seus objetivos estão mais fortalecidos, assim como ele se encontra mais embaraçado nessa rede de interconexões até certo ponto inevitáveis. É aí que percebem o abismo existente entre o que queriam ter sido na infância e o que se tornaram. É como se acordassem, repentina e subitamente, de um devaneio que se arrasta desde o nascimento. Aí vêm as perguntas existenciais: “que tenho feito da minha vida até hoje?”; “o que busco?”; “o que alcancei?”; “quem gostaria de ser?”; e, finalmente, “quem sou?”. É aí que percebem que não mudaram o mundo e que, mais triste ainda, estão longe de mudar. É aí que buscam um sentido para sua existência, uma busca dotada de mais temperança e equilíbrio do que aquela que caracteriza a adolescência. Finalmente, na velhice, compreende-se que a incapacidade de mudar o mundo não decorre de deméritos individuais, mas sim da naturalidade da vida humana. Concluem que seus atos não têm tanto peso como imaginavam – ou queriam – e que isso é o esperado de um ser humano. Compreendem que são poucas as coisas que realmente importam. Encontram-se consigo e com o outro. Espantam-se ao olharem para trás e verem os caminhos aos quais o destino os levou. Um destino dentre vários destinos. Destinos escolhidos, até certo ponto. Por vias tortuosas, alcançam seu encontro marcado.

Todos nós temos um encontro marcado. Não que já nasçamos com um destino previamente traçado, imutável, no qual aguardamos, hirtos, a sua consecução. Temos um encontro marcado com o destino. Ou melhor: com os destinos.

Rafael de Paula

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre um observador



Anda pelas ruas a fingir-se de despercebido, distraído e, por que não, desinteressado. Muito pelo contrário. Seu olhar perspicaz nada deixa escapar ou, se deixa, é simplesmente pela incapacidade, ou melhor, limitação humana de aperceber-se de tudo ao mesmo tempo. Fato é que o mais importante não havia de passar batido à atenção daquele que andava por aí espiando as pessoas. Não digo espionar no sentido mesquinho, torpe ou interesseiro. Mas no sentido de entender essas coisas magníficas que são os seres humanos. Magníficas, mas complexas. Quanto mais difícil, mais ele empenha-se em sua busca. Quanto mais fechado é aquele que se torna objeto de sua contemplação e reflexão, mais objeto ele se torna.


No ônibus, coloca o fone de ouvidos. Na sala, debruça-se sobre os livros e, quando não faz isso, esparrama-se sobre a carteira. Nas festas, dificilmente se embriaga em demasia – deixa para fazer isso em ambientes familiares, com aqueles que podem ser considerados verdadeiros amigos. É tudo parte da sua fantasia, do seu disfarce. Não quer que percebam o quanto ele se interessa por nós. Por medo de perder seus objetos de contemplação. Por medo que as pessoas percebam esse seu interesse e não compreendam a sua natureza. E se fechem, impossibilitando-o de fazer o que mais gosta. Caso descobrissem o que ele faz, as pessoas se fechariam, ficariam desconfiadas, arredias e, por que não, injuriadas. Quem não entende seus propósitos poderia sentir-se ofendido. “Afinal, com que direito este sujeito vem e rouba aquilo que tenho de mais secreto, mais íntimo e mais precioso?”. É o que pensariam. Como seres humanos, estamos abertos ao outro, mas até certo ponto. O verdadeiro observador vai além. Propõe hipóteses para tudo, sendo que algumas ele mesmo refuta tendo-as como mirabolantes. Outras refuta ao compartilhar com outro a opinião. Outras acerta em cheio, como uma flecha certeira que atinge o coração da sua presa. Chega ao âmago do ser, ainda que demore anos. Ainda que demore alguns minutos.


Mas para chegar ao outro, tocar a alma das outras pessoas, para se tornar um observador, não basta dedicar-se obstinadamente à análise alheia. Antes, é preciso, primeiramente, investir-se numa exploração interna, numa operação ao centro da própria alma. Uma busca nada fácil, diga-se de passagem. Uma procura que envolve admitir fraquezas, reconhecer medos, aperceber-se dos erros. Mas envolve a percepção do quão longe se pode chegar. E o observador nato, verdadeiramente eficiente, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, deve começar por ele mesmo a sua incessante busca por “não-sei-o-que”. Quem sabe um dia ainda cheguemos lá.


Rafael de Paula da Silva

quinta-feira, 10 de março de 2011

Sobre o carnaval

Acabou nosso carnaval. Ninguém ouve cantar canções. Ninguém passa mais brincando feliz e, nos corações, saudades e cinzas foi o que restou. Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê e nem se sorri, se beija, se abraça, e sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor. Sim, acabou, e o que nos resta é escutar a triste marcha da quarta-feira de cinzas. Uns sentem-se felizes depois de tudo que passaram; outros choram; outros refletem; outros se arrependem. Outros se entristecem pelo que não passaram; outros, pelo mesmo motivo, sorriem.

O que importa mesmo é o que tiramos disso tudo. Na verdade, o importante é fazer, constantemente, nossos próprios carnavais. Sem esperar, quietos, aquela semana onde todos bebem, pulam, desfilam, dançam, riem e amam. É beber, pular, desfilar, dançar, rir e amar nos diversos carnavais que acontecem várias vezes no ano.

Assim como a vida e tudo que há nela, todo carnaval tem seu fim e vem, depois dele, a quarta-feira de cinzas. Inevitável e inexorável. No entanto, é preciso cantar. Mais do que nunca. Porque são tantas coisas azuis. Há tanta coisa pra amar que a gente nem sabe! Ah, sim! Um dia, o carnaval há de voltar. Sempre volta.

Rafael de Paula

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sobre ser duplicado


Acordar, se levantar da cama e, diante de um espelho, ver-se como uma pessoa única e singular. “Como eu não há ninguém!”, pensamos e afirmamos, categoricamente. Depois disso, sorrimos satisfeitos deste pequeno consolo para a nossa existência – uma existência, no mínimo, tola. Então, somos unicamente insignificantes e medíocres. A existência de cada um de nós é tão sem sentido quanto a dos que vieram a este mundo e que ainda virão. Enganados estão aqueles que pensam que nossa trajetória por este mundo vai deixar alguma coisa para a eternidade. Assim como nossa vida, nossas ações e pensamentos são efêmeros, transitórios e finitos. Ora, não busquemos, então, deixar uma marca para a eternidade. Busquemos deixar marcas na vida de pessoas específicas (com vidas tão efêmeras quanto as nossas) em um tempo específico. Para mim já é suficiente, e é essa “pequeneza” que faz deste um grande feito. O pequeno não se transforma em grande, mas é grande por ser pequeno.

Mas imagine um dia ver-se duplicado. Ver, andando na rua, ou numa loja, ou no cinema, ou numa festa, ou num show, ou em qualquer lugar que seja, um indivíduo exatamente igual a você. Não como gêmeos idênticos, mas como duplicatas. Com o mesmo corte de cabelo, com as mesmas cicatrizes, com os mesmos trejeitos e com a mesma forma de pensar. Que faria, então, diante de tal pessoa? Que faria ela? Quem seria a cópia e quem seria o original? Haveria algum original? Como viveria a partir de então, sabendo que existe alguém exatamente igual a ti, vivendo neste mesmo mundo e neste mesmo tempo? E, depois disso tudo, que pensar da nossa frágil unicidade? Se não somos únicos, o que somos?

Diante desta situação hipotética nada original, o que cada um de nós faria? Ou, ainda, como imaginaríamos que as pessoas que conhecemos agiriam nesta situação? Como já foi dito, perderíamos a singularidade da qual tanto nos orgulhamos. Veríamos que não somos tão especiais assim. A sensação deve ser terrível. Mas vamos sair desta situação hipotética e part5r para uma outra concreta. Somos duplicados todos os dias por pessoas diferentes. “Fulano é igual ciclano”; “Veja, aquelas duas pensam da mesma forma”; “O público alvo deste CD são os alternativos”; “Tinha que ser favelado!”; “Pra estudar psicologia tem que ser meio doido”. Generalizamos e, assim, duplicamos, triplicamos. Num estádio de futebol, assistindo a uma partida, todos ali são atleticanos, ou cruzeirenses, ou mirassoienses (?). Enfim, torcedores. Ali, são todos iguais. “A torcida do atlético é fanática”; “A torcida do cruzeiro é exigente”. Nessas palavras, cada um de nós está incluído num grupo e, necessariamente, para quem generaliza, é igual aos outros. “Se você é psicólogo, logo, você é meio doido”; “Se você é torcedor do atlético, você é fanático”. O que é injusto. Sou atleticano mas não sou fanático. Sou estudante de psicologia mas não sou doido (?). Mas para a tendência e necessidade categorizadora humana, sou tudo isso que disse não ser. Para os outros. E sentimo-nos ofendidos com tal categorização. Afinal, sou estudante à minha maneira; torcedor à minha maneira. Paradoxalmente, para mim, estudante é tudo a mesma coisa, torcedor é sempre igual e emo é sempre emo. Odiamos ser categorizados, mas fazemos isso com os outros (tal como acabei de fazer com os emos). Assim, em todos os lugares, teremos alguma duplicata, seja em um ou mais aspectos.

Perdemos um pouco da nossa identidade a cada encontro. Portanto, ela se encontra fragmentada: um pedaço cá, outro acolá e um outro num lugar desconhecido. As identidades se fragmentam e se reúnem, mesclam-se, condensam-se e separam-se de novo. Somos menos originais do que imaginamos. Somos menos singulares do que gostaríamos. Mas ainda assim, de uma forma ou de outra, somos únicos. Somos suficientemente únicos para nós. À nossa maneira. Mas, ao mesmo tempo, insuficientemente únicos para o outro e, consequentemente, em alguns momentos, para nós mesmos. Então, contínua e ininterruptamente, tentamos provar nossa singularidade e, em alguns momentos, até mesmo criá-la, pensando que ela não existe. Estaremos sempre diante da dúvida entre “ser”, “não ser”, “tentar ser” e “provar ser”. Até o fim dos nossos dias.

Rafael de Paula

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Sobre não ser


"'Não ser' é 'ser'. 'Não ser' significa 'ser' o 'não ser'. Então, na pior das hipóteses, se 'é' o 'não é', ainda que achemos que 'nada somos'".

Rafael de Paula

domingo, 9 de janeiro de 2011

Sobre votos e esperanças do Ano Novo

“Que esse ano que chegou traga muitas felicidades e realizações”. A mensagem é linda. Dizemos isso a todas aquelas pessoas que gostamos na virada do ano (se falar alguns dias antes ou alguns depois também vale) e, na maioria das vezes, esses votos são realmente sinceros. Não acho tais felicitações hipócritas ou vãs. São felicitações mútuas entre pessoas que se gostam (claro que pode haver algum toque de falsidade e hipocrisia, mas tais sentimentos merecem apenas esse anexo neste texto. Deixar-los-ei para trás, jogados e esquecidos). Ano novo, natal, aniversário, todas essas datas comemorativas (dentre outras das quais não me recordo) nos proporcionam um momento oportuno para desejar coisas boas às pessoas. Coisas que gostaríamos de falar sempre que não encontram muitos momentos para serem ditas. Imagine uma pessoa que, ao chegar no trabalho, cumprimente cada um, todos os dias, e deseje saúde, paz, felicidade, amor, dinheiro, dentre outros. São votos implícitos, num acordo tácito, que não necessitam ser ditos todos os dias ou até mesmo em ocasiões especiais. Se gostamos de alguém, revelar-lhe que queremos o seu bem é algo inútil e até redundante: gostar é querer bem. Mas pela tradição, fazemos isso e continuaremos a fazer, até o dia em que as pessoas percebam que basta dizer “gosto muito de você”.

Dito que o Ano Novo é apenas uma oportunidade de desejar bem às pessoas queridas e amadas, que dizer das nossas promessas (geralmente nunca cumpridas) para o ano que acabou de chegar? “Vou estudar mais”, uns dizem. “Vou ser uma pessoa mais calma”, dizem outros. O que realmente muda na passagem do dia 31 de Dezembro para o dia 1 de Janeiro? Em nós, praticamente nada. É só a esperança que se renova. É a esperança de ter um ano melhor do que tivemos. Assim, a própria festa de réveillon ou mesmo a ceia natalina entram no campo do simbólico. Elas representam essa renovação da esperança. E festejamos – sim, festejamos a esperança. E ao festejá-la, a colocamos em um patamar mais elevado. Jogamos para o simbólico um pouquinho das responsabilidades de trazer coisas boas na nossa vida. É como quem diz: “To cansado de ficar correndo atrás de tudo. Então, me dá um pouco, por favor?”. Afinal, “esse ano as coisas têm – sim, não me adaptei às novas regras gramaticais – de melhorar!”. Ora, sem esperança não chegamos a lugar algum. Mas porque não renovar a esperança a cada dia? Porque não traçar metas maiores para o dia seguinte ou para a hora seguinte? Porque deixar isso ao encargo de um algo que existe no “ano novo”? É um algo que, diante de uma impotência natural do ser humano, acalma nosso espírito. Mas, no fundo, isso tudo é um pouco de desespero. De todos nós.

Rafael de Paula