quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Carta ao Sr. Joaquim Carvalho - Carta II

Caro Sr. Joaquim Carvalho,


Recebi com muita alegria a última correspondência que me mandaste. Acreditei, por alguns meses, que já não se importava com minha pessoa e que minhas cartas a ti enviadas tornavam-se fardos ou importunos cujo inevitável destino era o lixo, junto de todas aquelas coisas que não precisamos, que temos asco e, ainda, vergonha. É no lixo que despejamos os dejetos daquilo que utilizamos e, portanto, daquilo que somos. No lixo está o que não presta, e mesmo assim há umas tantas quantas pessoas que se submetem a remexer e revolver o lixo dos outros. Talvez seja isso: revolver o lixo dos outros é mais fácil que fuçar a própria sujeira. Então, realmente fico feliz de minhas cartas não terem terminado ali por voluntarismo de tuas mãos.


Por outro lado, não posso deixar de me entristecer pela partida de teu irmão e, ainda, pelas infelizes notícias que me chegaram por meio da última carta que me mandaste. Realmente estás tão mal? Tens tão pouco tempo? Infelizmente, não posso sair daqui. A cidade grande nos exige muito, nos suga até a última gota de suor e de sangue. O trabalho na fábrica de parafusos é extenuante e o salário é quase indigno, mas que posso eu fazer, já que foi escolha minha cá estar a viver? Devo encarar como homem as coisas que essa vida me impõe e assumir a responsabilidade por minhas decisões. Mas, confesso, eu era mais feliz aí, junto a ti e à minha família. Portanto, não te enganes com a cidade grande. Grande de tristezas, de frustrações e de solidão.


Os sonhos grandes acabaram comigo, caro amigo. Imaginei achar cá grandes oportunidades, grandes pessoas, grandes coisas. Mas o que encontrei foi gente pobre, sofrida e triste. Encontrei uma cidade cinzenta, tal como o coração dos seus habitantes. Evito as faces sorumbáticas que me encaram como que a sustentar um desafio tácito. Desafio à que? Que querem eles me tirar, se já não possuo mais nada além da pouca dignidade que me resta? Os homens aqui lutam somente pelo orgulho, pois não há nada que valha a pena, a labuta e a peleja. É assim que estão os homens: encaram-se e se destroem pela mera afirmação de si. Pela afirmação de nada. E se perdem nesse digladiar inútil. São assim as pessoas da cidade grande. Não têm história, não têm tradição, não têm dignidade. O passado destes homens se perdeu e com ele se perdeu a – sua – humanidade. É por isso que me lembro com alegria dos meus pais e da bonita história da nossa pequena cidade. Um povo que veio retirado – e não fugido, como dizem algumas más línguas! Povo bravo e heroico esse nosso! Lembro-me, também, com gosto dos bailes que movimentavam toda a vila, que faziam as damas se sacolejarem todas de excitação, que causava todo um rebuliço, que trazia esperança aos olhos dessa gente pobre, sofrida, mas feliz. Recordo-me com lágrimas nos olhos das épocas de colheita, quando todos se amontoavam debaixo dos pés de café – que nos eram tão preciosos –, sendo que hoje, tudo que colho é desprezo, rancor e parafusos. Seria eu mais feliz com sonhos pequenos em uma cidade pequena. Ambos do meu tamanho, e talvez pelo reconhecimento disso eu engrandeci. Talvez o reconhecimento da nossa pequenez e de que dependemos do outro nos torne grandes. Sou pequeno, por isso sou grande. E as pessoas da cidade não percebem isso. E ainda: acham que a grandeza vem do grande. Por isso, discordo de ti, mais precisamente, discordo veementemente do que tu me disseste na carta anterior. Portanto, não te iludas com a cidade grande.


Acácia cá esteve, junto a mim. Conversamos, bebemos e, depois, transamos. A amada de teu irmão esteve nos meus braços, esquentou meu corpo e me deu mais que o seu amor. Deu-me o que era de seu irmão. Mas a vida é assim: tomamos coisas que não são nossas achando que as são; damos muitas coisas a quem não quer ou que delas não precisam; enfim, erramos. Mas temos o direito de nos redimir. Ao menos uma chance merecemos. Eu e Acácia tentamos nos redimir com a carta que enviamos ao teu irmão. Post mortem, claro, mas pelo menos aliviamos um pouco nossas consciências que, confesso, ainda pesam. Nossas desculpas foram enterradas com ele e nem mesmo o mais poderoso terremoto será capaz de exumá-las. Estou certo de que fomos perdoados. Teu irmão era um homem grande, de coração enorme. E partiu feliz, apesar de tudo.


Mas pergunto: e Alice, respondeu-te? Acredito que não. Mas perdoa-a. Com certeza, em seu caixão, haverá uma carta de resposta. E quem sou eu para te dar conselhos? Mas é por me recolher à minha insignificância que te digo: vive bem com o que tens, esquece-te do que poderias ter tido e do que terás. Vive bem com o que tens, pois aos homens não são destinadas muitas coisas nesse mundo. Esse é o maior sonho que podemos ter e é também a coisa mais difícil a ser alcançada pela nossa condição humana.


Amigavelmente,
Sr. Ruas




P.S.: Aqui reescrevo o que escrevi na carta ao teu irmão, de forma integral e precisa: 


“Minhas sinceras desculpas por roubar o que era, sempre foi e seria teu.
Ass.: Sr. Ruas




Minhas sinceras desculpas por não ter sido sua, sendo que isso foi o que sempre quis. Minhas sinceras desculpas por não ter te dado o meu amor, que sempre foi seu não sendo.
Ass.: Acácia




Nossas sinceras desculpas por sermos humanos e, por isso, temos certeza de que há de nos perdoar. Perdoa também o teu irmão, que, com toda a certeza, sofre muito mais que ti.
Ass.: Acácia e Sr. Ruas”

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