terça-feira, 19 de abril de 2011

Sobre o menino, o poeta e a flor

Numa terra distante – comum como todas as terras que existem e existiram até então –, num certo dia – comum como todos os que se passaram até então –, nasceu uma rosa – comum como todas as rosas que nasceram até então. Tudo isso era belo, mas na terra onde crescia a flor não havia ninguém. Neste lugar não havia nem ao menos uma alma viva, sendo ele ermo como o coração do homem que havia perdido ou esquecido a semente que dera vida à rosa, ou mesmo que a plantara, intencional e, portanto, cruelmente, ali, na solidão completa. Que passaria na cabeça dum homem antes de largar, em desamparo, uma forma de vida tão indefesa em tão sáfara terra? E a flor sofria, não simplesmente por estar só, mas por pensar que outros poderiam padecer do mesmo mal que a afligia. Eis que, depois de longo tempo, gotas d’água precipitaram-se no solo, e a terra passou, a partir desse momento, a adquirir vida. Sementes até então adormecidas despertaram como num fulgor extasiante, cuja flor observava, arrebatada, à espera da plenitude. Então a terra criou vida: árvores ergueram-se majestosas e imponentes, a grama crescera e dava ao chão a tonalidade verde que antes lhe faltara e os insetos passaram a desfrutar, com respeito, daquilo que a natureza oferecia.


Eis que, num certo dia, aparece um menino que dizia vir de outro planeta. Encantara-se com a rosa o menino e passava os dias imóvel ao seu lado, apesar dos brados reprovadores da flor. “Vá descobrir o mundo, menino. Há tantas coisas para se ver enquanto perde seu tempo ao lado de uma simples flor”. “Não creio que haja algo mais bonito do que tu, flor, e este lugar onde vive. Nada que eu encontrar nesse mundo valerá mais a pena”, retrucou o menino. Resignada, a flor se calou e não tocou mais no assunto. Passaram a conversar sobre tudo que tinham visto em suas vidas, o que não era muito. “É tão diferente da flor que vive em meu planeta. Diferente dela, você é simples e humilde. Vive em total harmonia com esta terra, sem de nada reclamar. Apesar de amar a flor que abandonei, simpatizo mais contigo”, disse o menino. Eis que, num certo dia, surge um poeta, que queria, por tudo, cantar ao mundo a beleza da flor. Rubra, dessa vez de cólera, a flor insultava a impertinência e ignorância do poeta que, com tantos problemas no mundo, queria falar de uma simples rosa. “Olha para as questões sérias, calhorda!”, bradava a flor. Lastimoso, o poeta foi embora, sem escrever sua poesia e ainda sujo com o cocozinho dum passarinho que ouvira toda a conversa.


“Devia fazer como o poeta, menino. Vá cuidar das coisas sérias e me esqueça, pois aqui estou bem”, insistia a flor, depois do episódio com o poeta. “E você, flor. Quando foi que ficou assim? Quando foi que perdeu sua simplicidade e pureza? É por terem perdido a singeleza e pureza que os homens grandes ficaram assim, tristes, sozinhos e cruéis consigo e com os outros. É por serem sérios demais que os homens estão ficando cada dia mais angustiados e sós. E, agora, não faz mais sentido ficar ao seu lado. Você perdeu aquilo que mais admirava em ti. Em sua seriedade, perdeu a vida”, disse o menino, para depois se levantar. Antes de ir embora, disse ao passarinho: “Com que direito feriu o poeta? Quem pensa que é para condená-lo da forma como o fez? É por isso que sempre achei as pessoas grandes muito esquisitas, muito egocêntricas e cheias de si. O mundo pode ter perdido a chance de ler o relato da mais bela flor, uma flor que não existe mais nas esfumaçadas cidades e nem nos acinzentados corações daqueles que a habitam. Tolheu-lhes o direito à fantasia, ao sonho”. E o menino partiu. A flor, sozinha, via o menino sumir na linha do horizonte, indo sei-lá-pra-onde, enquanto percebia que, com sua seriedade, expulsou todos aqueles que lhe queriam bem. Tal como os homens sérios, padecia em sua solidão. E reparou no passarinho, que caminhava, dissimuladamente, na sua direção. E o poeta, como não pôde falar da rosa, escreveu uma bela poesia sobre o menino que se mantinha, resoluto, ao lado da mais fria flor.


Rafael de Paula

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