quinta-feira, 23 de junho de 2011

À procura do eu (des)conhecido



Parte I – A sombra

O despertador tocou alto, incômodo. Na verdade, o que mais atormentava naquela cena era a impassibilidade do sujeito deitado na cama diante de ruídos tão escandalosos. Pausa. O cenário fica mais leve sem o toque do maldito relógio. Era como se tudo aquilo que ali estava, imóvel, fossem eles seres animados ou inanimados, aproveitassem essa calmaria de momento. Afinal, a calmaria nada mais é do que o prenúncio da tempestade. Dito e feito. Recomeça o toque do despertador. Como antes, nenhuma reação do indivíduo deitado. Estaria ele a passar bem? Não há cansaço normal que explique tamanha apatia diante dos irritantes barulhos de um despertador. Pessoa normal, por mais fatigada que estivesse, tomaria alguma atitude. Talvez - por que não poderíamos nós inferir coisas sobre a personalidade de alguém tomando em conta apenas uma impressão momentânea? – o homem que ali vivia fosse assim diante da maioria das situações que se lhe apresentam na vida. Mas são apenas hipóteses. Então, por ora, abandonemo-las. Cessa o despertador. Pelas contas da vizinha de cima, do quinto andar, falta, ainda, um recomeço de despertador, até que cesse, automaticamente, pela última vez nessa manhã, desistindo de levantar aquele moribundo da cama.

As nuvens que cobriam o céu, seja lá por ação do vento ou mesmo por desígnios divinos – de um Deus que não mais aguentava o estado pachorrento no qual se encontravam alguns dos seres que certa vez criara com tanto esmero, à sua imagem e semelhança - deram passagem aos raios de sol que, impiedosos, alcançaram a janela do homem e terminaram por acertar em cheio a cara do sujeito. Ainda assim, nada. “Acorda, traste!”, disse uma voz. Pego de surpresa, o vagabundo, que já estava acordado desde que o despertador tocou pela primeira vez, mas que por indolência não reagiu, levantou-se, assustado. “É contigo que falo, malandro! Veja lá se isso são horas de continuar deitado!”. Depois da segunda fala não havia dúvidas de que alguém se infiltrara em sua casa enquanto dormia e, agora – porque agora? –, vinha falar-lhe. “Quem é? Apareça de uma vez, quem quer que seja! Olha que chamo a polícia!”. “Chama então, e passe por um tolo. É óbvio que a polícia não encontrará ninguém”. Acuado, o homem tateava a escrivaninha, ainda que também estivesse a buscar com os olhos o intruso que lhe dirigia as palavras, procurando algo que fosse útil caso fosse preciso reagir. Tudo que encontrou foram umas tantas canetas. Mas sem dúvida, numa peleja, são melhores as mãos nuas à uma caneta; e parece que pensamento similar lhe ocorreu, visto que tocou a caneta e logo a abandonou, sem deixar de mostrar certa desolação misturada ao medo diante de um alguém que não via e não sentia, mas só escutava. “Não pode me tocar e nem me ferir. Olha para baixo e vai me encontrar”. Olhou para baixo e, diante das janelas de seu apartamento, via que quem lhe falava era nada – ou ninguém, visto que, por estarmos no início da história, ainda não sabemos se seria melhor designar aquilo como coisa ou como gente – menos que sua sombra.

Um comentário:

  1. Meu comentário vai ser pobre, mas é tudo o que eu pensei, sintetizado, quando acabei de ler: Eu gostei muito disso.

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