sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre um observador



Anda pelas ruas a fingir-se de despercebido, distraído e, por que não, desinteressado. Muito pelo contrário. Seu olhar perspicaz nada deixa escapar ou, se deixa, é simplesmente pela incapacidade, ou melhor, limitação humana de aperceber-se de tudo ao mesmo tempo. Fato é que o mais importante não havia de passar batido à atenção daquele que andava por aí espiando as pessoas. Não digo espionar no sentido mesquinho, torpe ou interesseiro. Mas no sentido de entender essas coisas magníficas que são os seres humanos. Magníficas, mas complexas. Quanto mais difícil, mais ele empenha-se em sua busca. Quanto mais fechado é aquele que se torna objeto de sua contemplação e reflexão, mais objeto ele se torna.


No ônibus, coloca o fone de ouvidos. Na sala, debruça-se sobre os livros e, quando não faz isso, esparrama-se sobre a carteira. Nas festas, dificilmente se embriaga em demasia – deixa para fazer isso em ambientes familiares, com aqueles que podem ser considerados verdadeiros amigos. É tudo parte da sua fantasia, do seu disfarce. Não quer que percebam o quanto ele se interessa por nós. Por medo de perder seus objetos de contemplação. Por medo que as pessoas percebam esse seu interesse e não compreendam a sua natureza. E se fechem, impossibilitando-o de fazer o que mais gosta. Caso descobrissem o que ele faz, as pessoas se fechariam, ficariam desconfiadas, arredias e, por que não, injuriadas. Quem não entende seus propósitos poderia sentir-se ofendido. “Afinal, com que direito este sujeito vem e rouba aquilo que tenho de mais secreto, mais íntimo e mais precioso?”. É o que pensariam. Como seres humanos, estamos abertos ao outro, mas até certo ponto. O verdadeiro observador vai além. Propõe hipóteses para tudo, sendo que algumas ele mesmo refuta tendo-as como mirabolantes. Outras refuta ao compartilhar com outro a opinião. Outras acerta em cheio, como uma flecha certeira que atinge o coração da sua presa. Chega ao âmago do ser, ainda que demore anos. Ainda que demore alguns minutos.


Mas para chegar ao outro, tocar a alma das outras pessoas, para se tornar um observador, não basta dedicar-se obstinadamente à análise alheia. Antes, é preciso, primeiramente, investir-se numa exploração interna, numa operação ao centro da própria alma. Uma busca nada fácil, diga-se de passagem. Uma procura que envolve admitir fraquezas, reconhecer medos, aperceber-se dos erros. Mas envolve a percepção do quão longe se pode chegar. E o observador nato, verdadeiramente eficiente, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, deve começar por ele mesmo a sua incessante busca por “não-sei-o-que”. Quem sabe um dia ainda cheguemos lá.


Rafael de Paula da Silva

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Opa...há um tempo eu escrevi sobre o tema tb, olha aí:
    "Com o propósito de melhor observar acabou se afastando da realidade. Aliás, o que é mais lógico, acabou se aproximando perigosamente da realidade. Foi por isso um dos homens mais solitários que conheci .Adquirira um talento funesto de espectador e ia desenvolvendo com tempo, de modo à melhor espectar, habilidades tristes de distanciamento. Notara que ao colocar-se afastado, onde pudesse ver sem ser visto podia compreender melhor todo mecanismo, todo entrave, costume, padrão e magia determinantes do comportamento humano. Buscava a aquisição do modelo perfeito da realidade, para compor sua obra de gênio, opúsculo ou cartapácio, com a máxima ou total fidedignidade ao homem real. Todavia, e era de se prever que esse todavia não seria evitável, quanto melhor conhecia esta máquina, quanto mais analisava suas engrenagens, sorvia seus vapores comburentes e seus estrompidos cruxeantes e esmagadores e quanto melhor tornava-se em prever as manifestações de seus impulsos e necessidades, quanto mais conhecia seus pequenos signos secretos, menos era acapaz de aplicá-los. E com sua glutonice de compor e conhecer o espírito do homem, perdia seu próprio. Acreditava, isso no começo, quando o distanciamento ainda não demonstrara o rigor de seus sintomas, que essa era sina de todo artista, destrinchar, esmiuçar e estudar a realidade para melhor compor a realidade. Mas não pensara absorto como estava em suas deglutições sombrias e vorazes de grandeza, que o artista, não importa qual ou como nem onde, só é capaz de expor a tortuosidade do seu mundo interior, somente a digestão de suas impressões da realidade, e que não há nada tão falso e tão mentiroso quanto a arte".

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