quarta-feira, 17 de abril de 2013

Folhas secas e o roubo do amanhã



“E depois de tudo, céu e terra aí estão, como se nada tivesse acontecido. A vida e as ações do homem têm o peso de uma folha seca numa ventania”. Li esse trecho, certa vez, em um livrão grande e grosso que eu ganhei dos meus pais na época em que eles acreditavam que eu era um leitor fervoroso e que eu ia ser escritor, tudo isso simplesmente por não terem referência alguma da leitura e escrita dos outros jovens da minha idade. Apesar de não ter tanta certeza da fidedignidade da transcrição deste trecho, estou certo de que o significado que ficou para mim foi esse e que ele foi meu objeto de reflexão durante vários anos - não constante, obviamente. Assim, pouco importa que a frase realmente não seja essa: a frase que tenho na minha cabeça me impressionou. Acho-a de uma estética privilegiada e causadora de um impacto imediato. O autor jogou na minha cara que minha vida não tem peso nenhum; jogou-me na cara que tudo o que fiz, faço e farei não vai valer absolutamente nada. Ainda assim, achava-a bonita, porque me fazia lembrar a minha pequenez e não deixava que a humildade fugisse para longe e me abandonasse por completo. Com o tempo, fui levantando hipóteses de que nossas ações têm peso sim, afinal, como fizeram algumas pessoas para registrar seu nome nos livros de história? Para o bem ou para o mal, polêmicas ou não, certas ou erradas, as pessoas fizeram coisas que marcaram a humanidade, que mudaram o nosso mundo, e estas estão imortalizadas nas páginas da nossa história. Então, mudei o foco da questão para mim: qual o peso das minhas ações no lugar onde eu vivo?  Resolvi, inspirado por alguns filmes e desenhos que assistia, que se eu pudesse proteger quem estivesse ao meu redor, respeitando as minhas capacidades e possibilidades, eu já estaria fazendo muito. Singela filosofia de vida que havia me tocado verdadeiramente. Eu, na minha pequenez, poderia fazer alguma diferença nas vidas de alguns. O tempo passou e fui percebendo o desafio que era estar, de fato, junto do outro e ser, efetivamente, uma presença nas vidas das pessoas, ainda que muito poucas. Eu, que, reconhecendo minhas limitações, havia reduzido o horizonte para tornar mais palpável minha tarefa, me frustrei quando percebi que ainda assim a minha dificuldade era imensa. Se não posso ser presença em casa, se não posso ajudar em um contexto específico, se não posso proteger muitas das pessoas que estão ao meu lado, então não posso fazer nada. Por fim, quando tomei consciência das minhas limitações e aceitei as regras do jogo, a angústia saiu de mim: não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo, não posso cuidar de todos ao mesmo tempo, por vezes não sou capaz de cuidar de nenhuma pessoa sequer e, se não consigo cuidar de mim, sou absolutamente incapaz de cuidar do outro. A palavra cuidar é, para mim, hoje, deveras importante. Na universidade, redescobri o valor e a força desta palavra e parei de proferi-la aleatoriamente, em qualquer contexto ou situação, de forma casual e descompromissada. Aprendi que ela é uma palavra preciosa porque aprendi o valor e a importância de cuidar de alguém, ainda que seja uma única pessoa. Redescobri minha antiga filosofia de vida, aquela mesmo de cuidar e proteger quem estiver ao meu redor de acordo com minhas possibilidades. Redescobri a força deste ato e a potência de uma pessoa que é uma presença verdadeira e preocupada e atenta. É só reconhecendo as minhas limitações que eu consigo estar disponível para o outro.

Contudo, de vez em quando, alguns acontecimentos abalam nossas bases. E quando a vida joga na sua cara que você é fraco mesmo, que você não tem controle sobre nada? Sabe aquelas coisas que parecem estuprar a vida? Elas acontecem. Sabe quando você mata uma aula para fazer algo que, caso você tivesse se organizado melhor, você não precisaria fazê-lo naquele horário, depois escuta dos amigos que a aula foi bacana, foi bonita, que o professor estava com uma cara muito boa apesar dos sérios problemas de saúde e, no dia seguinte, você descobre que o professor morreu? Então, foi bem por aí. Mal o conhecia. O que me abala é o roubo do amanhã. Deixei para ir à aula semana que vem, mas a “semana que vem” não existe mais. Não temos controle sobre nada, ou quase nada, e nesses momentos nos damos conta que realmente somos folhas secas na ventania. Dizem-me: como poderia saber que ele faleceria? Digo-lhes: não poderia saber e, mais ainda, não consigo viver cada momento como se fosse o último. O mais perto que posso chegar disso é reconhecer os momentos importantes e tentar agarrá-los no presente. Hoje a vida me deu uma cutucada e a realidade se mostrou inexorável. Foi um aviso da realidade para eu cuidar e para eu tomar o cuidado de reconhecer, hoje e aqui, o que me é importante antes que isso me seja roubado. Que pelo menos me seja roubado um futuro de um presente que eu vivi, não o futuro de um presente que eu deixei de viver e que reconheci tardiamente. O amanhã nos será roubado, invariavelmente, porque a realidade é sempre maior do que nós e está sempre fora do nosso controle. A grande questão é aprender a ser folha seca: temos que saber reconhecer e viver o que reconhecemos como importante e, assim, dançar nosso próprio ritmo dentro da ventania que inevitavelmente nos carrega. Porque a tempestade chega e, de forma implacável, rouba de nós o amanhã. Para sempre.