segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Carta ao Sr. Ruas - Carta I

Meu caro amigo,


Já adianto que me sinto envergonhado pelo tempo que não dou notícias. Suas cartas se acumulam já empoeiradas em minha estante, mas guardadas com o zelo que elas merecem. Todas elas lidas de canto a canto, com cuidado inestimável, mas nenhuma delas respondida. Não por indolência, mas por motivos pessoais sérios que roubaram de mim todas as forças para viver e retribuir quaisquer gestos de estima e de amizade, como os seus. Então, minhas sinceras desculpas. Em busca de me redimir, vou lhe contar uma estória, ocorrida aqui mesmo na nossa cidade de onde já partiu, na qual ainda permaneço. Enraizado como duras raízes de velhas árvores, nunca saí daqui. Diferentemente de você, não tenho sonhos grandes e nem o talento necessário para ter esse tipo de sonho. Se os tivesse, me arrebentaria todo nos impávidos tijolos da realidade. Mas contarei uma estória dessas que não se vê comumente, muito menos na cidade grande.

O fato é que ninguém sabe ao certo quando foi que ele chegou. Alguns dizem que desceu na estação do trem próxima à Igreja, na praça onde costumávamos nós brincar quando crianças, portando apenas uma maleta de mão e uma sacola que pendia nos ombros. Outros dizem que chegou montado num jumento velho e maltratado, tão magro e sonolento que dava dó. O velho Irineu, da padaria, está certo de que já o vira quando serviu o exército. Marta, do cabaré, afirma já telo visto no bordel que trabalhava quando era jovem e ainda era capaz de levar os homens à loucura. Sr. Júlio, jornaleiro, está convicto que já o vira num jornal de tempos atrás, ao lado do governador e dançando com a mulher do prefeito. Aristeu, da pousada, diz que já o vira num dos cursos de hotelaria que havia feito vários anos atrás no norte do país. Zulmira acredita tê-lo visto no sul e Maria das Dores, no leste. Há algumas línguas perfídias que insistem que veio fugido, de polícia e de bandido. Há alguns outros que, sem mais o que fazer, espalham que ele tem uma doença incurável e que aproveita seus últimos dias no marasmo e quietude da nossa cidade. Mas ninguém tem certeza de nada e falam sobre tudo, coisa característica da nossa ignóbil condição humana.

Certa vez o vi voltando das compras. Cumprimentou-me com uma discreta mesura e continuou seu caminho, tal como eu fiz. Não parecia ter comprado muitas coisas; não parecia ser do tipo perdulário. Vestia-se com cuidado, mas sem luxo. O chapéu, apesar de velho, era limpo e parecia sempre ser escovado. As blusas, sem manchas, nunca estavam amarrotadas. Os sapatos estavam sempre bem engraxados, apesar de as solas já estarem gastas pelo uso. Seu olhar era sereno e até meio triste, daqueles que baixam as vistas e não se delongam no fitar de olhos. Mas a face já afetada pelo tempo e pelas intempéries dos destinos demonstrava uma placidez inexpugnável, diria até magnânima. Seus gestos, palavras e tom de voz eram d’uma polidez exemplar e às vezes até constrangedora para nós que, de origem simples, vemos e tratamos todos com intimidade muitas vezes inapropriada. Era de uma polidez singela, o que a tornava mais bonita.

Sabe-se que um dia, pois os boatos se espalham como piolhos em cabeleira de mendigo, aquele homem caiu na rua. Assim, de repente. Vários se juntaram para acudi-lo, alguns genuinamente prestativos e outros mais por estas convenções sociais que muitas vezes nos impelem a fazer coisas que não queremos, mas que nos sentimos obrigados a fazer a fim de evitar admoestações e reprimendas tácitas ou não. Fato é que ele caiu como uma jaca. Dali foi levado para a casa da Mãe Joana, naquele terreiro em que costumávamos nos esconder para ver os espíritos que diziam habitar por lá (me recordo que tudo que encontramos foram uns cachorros que trepavam e uma velha louca que nos atirou uma vassoura, que acabou acertando os lascivos animais). Dizem que ficou febril, mas outros dizem que tossia sangue. Talvez os dois. Como já corria pela cidade, parecia que ele ia mesmo morrer. O Doutor Saulo, médico dos bons, filho do Doutor Ernesto, que aqui trabalhava na época em que você ainda estava, tinha dado o veredicto: uma semana. Como não tinha amigos ou parentes próximos, ficou por ali mesmo, no terreiro. À noite, até mesmo eu, que moro a duas quadras da Mãe Joana, podia escutar os gritos do pobre coitado, que padecia daquele mal desconhecido e portanto sem cura.

E acabou que, profeticamente, em uma semana, o sujeito morreu mesmo. Foram feitas doações para o velório e para o enterro, pois, por mais que ele não tivesse ninguém próximo que vivesse na cidade, não merecia ser jogado em qualquer buraco ou mandado para uma cidade qualquer, como um trambolho daqueles que todos querem se livrar o mais rápido possível. No dia do velório, apareceu uma mulher. Vestida com luxo, mas sem cuidado, a dama, sob os olhares de todos, caminhou até o caixão, deixou um bilhete e partiu. Eu, por minha posição privilegiada, pude ver que ela se desfazia em prantos, que deveras sofria. Fitei o bilhete e, por incrível que pareça, reconheci a letra. Era a sua letra, meu amigo Ruas. Não aguentando de curiosidade, fui para diante do caixão. Vi como o tempo era inexorável. Pessoas vão e vêm, nascem e morrem, como coisas pequenas que, se formos comparar com tudo que existe, não são nada; nem as várias pequenezes reunidas parecem valer alguma coisa nesse momento. O fato é que me fixei no rosto do homem. Um susto! Esfreguei os olhos e olhei de novo. Impossível, mas era eu! Via meus contornos, meu queixo largo e quadrado, meus cabelos já brancos e ralos, minha cicatriz logo acima do olho e a eterna marca da aliança em meu dedo. Mas faltava-lhe um pedaço da orelha, e a minha era perfeita. Ainda assim a semelhança era assombrosa. Assustado, olhei para os outros para ver se compartilhavam do meu assombro, mas pareciam indiferentes tanto em relação à morte do homem quanto em relação a nossa semelhança. Ninguém parecia nem ao menos notar. Até que, vendo onde eu estava, todos começaram a me cumprimentar, ainda que com certo desprezo e desdém, e ofereceram-me seus pêsames. E tive de admitir, para mim e diante dos outros, que aquele era o irmão que eu tanto reneguei.

Dias depois descobri que ele viera de longe procurar por duas pessoas, mas não as havia encontrado. Quem seria a outra? Há, de fato, uma coisa que os homens sempre procuram e, pensando nisso, resolvi mandar uma carta à Alice. Ela não respondeu, como era esperado, mas estou certo de que a carta chegou. Não posso mais mandar uma carta a Manuel Carvalho, e disso me arrependo profundamente. Entristeço-me pela sua partida e pela minha covardia. Dizem, na cidade, que não valho o pão que o diabo amassou. Espalham que estou doente, tal como estivera meu irmão. Admito meu opróbrio, mas quem pensam eles que são para me condenar assim? Realmente padeço de um mal desconhecido e dia destes caí na rua, mas não houve braço a se estender em meu auxílio. Nem ao menos as obrigações sociais...Uma semana, assegurou-me o doutor. Mas agora, no fim desta carta, lhe pergunto: o que havia no bilhete que mandou ao defunto do meu irmão? Aguardo ansiosamente por uma resposta.

Atenciosamente,

Joaquim Carvalho.

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