terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sobre como vemos as coisas

Tem gente que vê colorido. Tem gente que vê em preto-e-branco. Tem gente que não vê nada.

Os que vêem colorido encontram, sempre, algo mais nas coisas que vivem (o que não significa que esse algo mais não exista). Uma senhora cansada no ônibus é a expressão da humildade de
gente pobre e carente, que trabalha a vida inteira em troca de nada. O suor que escorre pelo seu rosto representa todo o sacrifício, esforço, dedicação e simplicidade dessa nobre pessoa; o suor representa o trabalho e a superação de várias dificuldades. Para quem vê em preto-e-branco, é apenas uma senhora cansada, suada e triste que volta do trabalho maçante. Ela só está cansada e, quando chegar em casa, vai se deparar com seu marido bêbado e violento; vai encontrar sua filha na rua com um vagabundo qualquer e vai ver seu filho fumando na esquina com os amigos. Quem não vê nada, não vê essa senhora, oras!

Para quem vê colorido, uma velha que passeia com o neto representa todo o ideal de família perfeita. Representa a união de duas gerações distintas, mas que se entendem, se dão bem e dependem uma da outra. O sorriso da criança e o olhar terno da avó simbolizam o amor que está ali, escancarado, para quem quiser ver. A cena transmite paz e acalma seu coração. Para quem vê em preto-e-branco, a velha é manca, a criança está suja e os pais estão ausentes. A avó passeia com a criança porque os pais trabalham o dia inteiro e não tem tempo para o filho. O amam, claro, tal como a avó, mas as necessidades da sociedade dinâmica, cruel, massacrante e impiedosa não deixam que os pais estejam presentes. Impedem que os filhos sintam a presença dos pais; impedem que os pais compartilhem momentos essenciais com aqueles que vieram deles, que são sangue do seu sangue e fazem parte da sua vida. Quem não vê nada não
notou a criança, não notou a velha e, provavelmente, não viu que a velha o cumprimentou com um balanço de cabeça e a criança sorriu para ele – com um sorriso sincero daqueles que só a pureza da infância permite.

No mundo cheio de cores, não há nada mais bonito do que alguém que se sacrifica pelos outros. O homem que ajuda o cego a atravessar a rua, mesmo que se atrase para o trabalho, torna-se a pessoa mais digna do mundo. O cego sorri, agradecido, e o homem também sorri, satisfeito por ter ajudado alguém. A cena de ambos caminhando na faixa de pedestre, vagarosa e sincronicamente, é marcante; atrai o olhar de quase todos, que não podem deixar de sentir uma pontada de admiração. Na ótica do preto-e-branco, o homem sorriu por educação e o cego sorriu mecanicamente, como sempre faz para todos que o ajudam. Aqueles que não vêem nada esbarraram no cego.

Para o mundo colorido, uma troca de olhares representa vários sentimentos, dizem coisas que as palavras não são capazes – e não podem ter a pretensão – de dizer. Representa a expressão mais pura das emoções humanas, algo além da compreensão humana. Algo que só pode ser sentido e ponto final. Uma troca de olhares, para os devotos do preto-e-branco, é apenas uma troca de olhares, que pode estar carregada de ódio e remorso, que pode abrigar os sentimentos mais vis e mesquinhos. Quanto ao último grupo, estes nem trocam olhares com ninguém. Se não vêem nem eles mesmos, que dirá de ver os outros. Abaixam seus olhos para as ruas cinzentas da cidade e não são capazes de ver a sujeira ou o brilho do piso que seus pés tocam.

Quem vê colorido vê um mundo mais alegre, mais bonito, mais tolerável. Vêem um mundo melhor
e são pessoas melhores. Dão uma pincelada de cor à vida dos “preto-e-branco”. Quem vê em preto-e-branco vê como as coisas estão erradas, como a vida não tem sentido e como a existência de cada homem é ínfima, insignificante e medíocre. Por verem um mundo ruim, querem mudá-lo, e não são menos admiráveis do que os que vêem algo mais nas pequenas coisas. Dão um toque de realidade à pintura extravagante dos que vêem cores demais. Quem não vê nada não vê beleza nem feiúra, não vê justiça nem injustiça, não vê as coisas grandes nem as pequenas. Não aceitam as pinceladas de cor e também se recusam a ver o que está diante dos seus olhos cegos e indiferentes. Simplesmente, fecham os olhos para a vida, se recusando a viver. Enquanto algumas pessoas se ajudam, precisam umas das outras, outras, com suas atitudes desprezíveis e mesquinhas, só atrapalham; a eles mesmos e ao mundo.

Tem gente que aprendeu a descolorir. Tem gente que aprendeu a dar uma pitada de cor na vida. Tem gente que não aprendeu nada.

Rafael de Paula

3 comentários:

  1. Ei, não sei se concordo com a parte que você diz que as pessoas que vêem colorido são pessoas melhores.

    Penso que tudo isso é relativo, mas acho que as pessoas que vêem colorido não percebem muitas vezes as tristezas e a pobreza do mundo, ou se vêem, não as entende de maneira profunda e, para mim, por isso essas pessoas acabam vivendo suas vidas coloridas e achando que tudo está bem e feliz do jeito que está.

    Acho que os que vêem preto e branco talvez tentem mudar a situação, mas vêem que as coisas não vão mudar e desistem.

    Já os que não vêem nada não existem, porque todos somos esses as vezes e não existe quem só seja assim. Acho que somos um pouco de todos dependo do nosso estado emocional, mas é claro que tendemos mais para um lado.
    Talvez isso tudo só seja a visão de alguém que vê tudo preto-e-branco, vai saber.

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  2. Primeiramente, obrigado por dedicar um pouco do seu tempo à leitura desse texto, seja lá quem tenha postado esse comentário. E obrigado pela crítica construtiva.

    A categorização, neste texto, é, principalmente, ilustrativa. Acredito que estes tipos puros não existem. Apenas seria mais fácil mostrar tendências das pessoas a partir da definição de tipos puros como estes. É como eu disse, uns são contaminados pelos outros e as cores se misturam com a tinta preta-e-branca.

    Quanto às pessoas que vêem colorido serem melhores, concordo que é relativo. No meu ponto de vista, são pessoas que alegram o mundo. A realidade é pesada demais e precisa de um toque fantástico, surreal. Aí surgem essas pessoas para tornar o mundo mais tolerável. E por isso acho que são melhores. Contudo, os grandes gênios da humanidade (seja na literatura, música, artes) foram aqueles que viam o real e o invisível de uma maneira sábia e perspicaz. Os gênios foram os que viam tudo em preto-e-branco e também colorido.

    E acredito que há pessoas que não vêem nada. Acredito que há pessoas que não querem ver nada. Acredito que o pior cego é aquele que não quer ver. Tem gente que se fecha em seu pequeno mundo e se aliena. Não vê colorido nem em preto e branco.

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  3. Gostei muito, Comu. Não sei se classificaria as pessoas da mesma forma, mas certamente concluiria da mesma forma: há os que aprender a descolorir, os que aprender a enxergar as cores e os que não aprendem nada.

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