quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

De areia



Sem perceber, Pierre Menot fazia o movimento contrário. Quando olhava para a cachaça, via nela todas as suas angústias, sofrimentos, arrependimentos e tristezas; num único gole, queria botar tudo isso para dentro de novo, para ninguém mais ver e saber o tanto que sofria. Afinal, a dor era só sua e ninguém tinha o direito de vê-la e julgá-la, de reconhecê-la, de se compadecer ou dela zombar. Não era justo. Como era dor demais, o álcool não podia deixar de ser proporcional e um gole estava longe de bastar. Um para a angústia, três para a tristeza, mais três para o arrependimento e um último ao pai, que sempre o havia alertado; duas cervejas para a tristeza de hoje e seis para a de sempre; um olho roxo e um lábio sangrando para a culpa e necessidade de autopunição – ainda que indiretamente auxiliada; cinco cigarros para rever a vida, uma vez em cada um e, em cada, uma vida diferente, ainda que sempre triste, e outro cigarro para flertar, fingindo que ainda se importava; um trago de enrolado de Cannabis sativa para cavar o poço, que ainda não era fundo o suficiente. Se todos ali no bar fossem atletas, seu porre seria considerado olímpico. Depois da bagunça, dos golpes e do tombo, silêncio, sucedido por um burburinho, uma sirene, algumas pessoas de roupas brancas que corriam e faziam tudo muito rápido, mas sem pressa, e, no fim, alguns comentários perniciosos de gente da mesma estirpe que, para não admitir sua própria fraqueza de espírito, se julgava superior. Estavam todos não no mesmo barco, mas em barcos igualmente furados, afundando-se, isoladamente, em suas tristezas particulares.

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Estava tudo branco demais. Havia um ruído eletrônico que, de alguma forma, representava sua freqüência cardíaca. “É melhor você se tratar”, diziam alguns jalecos brancos que por ele passavam. Quem essa gente pensa que é?

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A claridade era insuportável, tal como o barulho. Centenas de pistões lançando gasolinas em bombas, movimentando rodas borrachudamente queimadas, produziam uma poluição plural. Alguns se zangavam com os encontrões que não podia evitar, enquanto outros chegavam a se preocupar, sem, contudo, deixarem de andar. A rua estava suja de fuligem, borracha e sola de sapato. A pressa para chegar a algum lugar deixa um rastro perceptível. No caminho, as quadras pareceram montanhas, mas finalmente estava diante do interfone, da porta e da lembrança das chaves. O porteiro cedeu uma chave e um assentimento discreto foi tudo que pôde fazer. Já era a quarta em menos de um ano.

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O cheiro de poeira estava em todo canto. Na verdade, não era bem de poeira: era cheiro de solidão, que é muito mais forte e facilmente identificável. Cama, criado, armário, mesa e duas cadeiras, um sofá de três lugares e uma poltrona, televisão e rádio, oito copos, fogão, um prato de louça e um de alumínio, geladeira, três garfos e duas facas, pia e tanque. Longe de ser simples, era uma casa abandonada, em uso. No sofá, deitou e descansou pela primeira vez em dois dias. O sol incomodava, mas as forças lhe faltavam e as persianas continuaram abertas. Dormiu um sono quente e sudoríparo, assaz agitado, com imagens do que tinha e não tinha sido. Normalmente era o contrário, mas, naquele momento, as imagens do que tinha sido doíam muito mais.

A maldita velha já batia à porta. “Não vou abrir”, era o que pensava. As batidas continuaram de forma insistente, incansáveis, e o seu coração, que já batia cansado, não podendo suportar tanto vigor, fez o corpo abrir a porta, numa rara injeção de ânimo. “Bom dia o inferno!”, pensou. “Fome, não tenho”, disse. “Está meio sujo, mas se insiste...”, resignou-se. A companhia, contudo, não era ruim, como demonstrava a reação inicial: era a companhia mais agradável possível: uma mulher simpática, não velha, como ele sempre insistia em pensar, afável, preocupada, inteligente ao seu modo e, também ao seu modo, feliz. Era também bonita, mas quando os olhos estão fechados, a beleza não aparece. O grande problema da mulher era sua capacidade de enxergar o coração e isso era insuportável para ele. Ela o lia como um livro infantil e o interpretava como gente grande. Era esse seu grande defeito. Quem ela pensa que é?

Horas se passaram em conversas e assuntos que mudavam e que se desenvolviam de modo já habitual. Chegaram ao ponto de sempre e a carranca do homem apareceu, como sempre. Não era a felicidade que ele havia tido e desperdiçado ou deixado de buscar. Não era isso. Era a felicidade que ele lutou e que, por ele não poder controlar tudo e por ser pequeno como todo mundo é, não dependia apenas dele. Era isso que ele precisava entender, mas não queria, não podia. Anos e anos construindo um castelo de areia, lindo, imenso, perfeito, mas de areia; e o vento soprou, como sempre fez e sempre haveria de fazer. Reconhecer a fragilidade do seu construto, da obra de sua vida, era difícil. Estava perdido não nas ruínas, porque castelos de areia, quando desabam, não geram escombros. Estava preso no deserto que havia criado com a destruição da sua vida. De vez em quando até via o mar, porque a maré sempre sobe, mas tinha medo de construir uma ponte de areia, a única que sabia fazer. E por isso não fez mais nada. Como até a areia se cansa de ficar parada, ela se torna movediça. O perigo estava aí.

E essa gente, de casa de tijolo e cimento, quem eles pensam que são?




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